quarta-feira, 4 de julho de 2012

Safatle: Nome próprio da cultura

Nome próprio da cultura


No Brasil, os debates sobre ação cultural normalmente pecam pelo medo de afirmar as exigências da cultura em voz alta.
De um lado, há aqueles para quem os investimentos em cultura se justificam por permitir o desenvolvimento da "economia criativa". Nessa visão, cultura é bom porque gera empregos, turismo e desenvolvimento econômico.
De outro, há os que veem a cultura como ponta de lança de serviços de assistência e integração social. Mais música e menos violência --é o que alguns gostam de dizer, como se houvesse alguma forma de relação direita possível. O que abre um perigoso flanco: se o índice de violência não baixar, o investimento em música parece perder o sentido.
Por fim, há os que compreendem cultura como um mero complemento para a educação. Todas as ações culturais devem estar integradas em um projeto educacional pedagógico.
Há de lembrar a tais pes- soas que a cultura ocidental construiu seu lugar exatamente por meio da recusa dessas três tutelas. Platão e Rousseau, por mais que enunciassem pensamentos distintos, tinham ao menos a similitude de ver a arte como uma pedagogia para o bem-viver em sociedade. Não por outra razão, um expulsou os artistas de sua cidade ideal e o outro brigava para não abrirem um teatro em Genebra. Afinal, Dostoiévski, Francis Bacon, John Cage e Paul Celan não são exatamente companheiros na arte da descoberta do bem-viver. A arte serve mais para desestabilizar visões de mundo do que para referendá-las.
Já a subsunção das discussões culturais aos imperativos da nova "economia criativa" é só mais uma maneira de justificar a lógica de mercador de certos administradores culturais. Assim, eles podem financiar o que circula mais, já que a alta circulação é o critério fundamental para a avaliação dos processos de produção econômica.
Como Britney Spears sempre circulará mais do que Anton Webern, fica justificada a transformação do Estado em departamento de desenvolvimento de subprodutos culturais para a indústria. Daqui a pouco, teremos baile funk pago pela Secretaria da Cultura (ainda por cima, com a desculpa de que se trata de manifestação popular).
Mas o Brasil mereceria um debate cultural que não precisasse de muletas para se justificar e que não tentasse perpetuar falsos dilemas --como cultura elitista x cultura popular, cultura dos países dominantes x cultura da periferia e outros absurdos do gênero.
Aqueles que acreditam que a cultura serve, sobretudo, para desestabilizar visões de mundo e compreender a força crítica das formas estéticas deveriam parar de falar em voz baixa.
VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.
Vladimir Safatle
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da versão impressa.

O mito da geração despolitizada

Filósofo contesta mitos sobre “geração despolitizada”, propõe intensificar choque de valores e sugere que é preciso hackear instituições conservadoras
Entrevista a Beatriz Macruz, Guilherme Zocchio e Rute Pina* | ImagemRacalavaca (flickr)
Que caracteriza o comportamento da geração que, ao chegar à faixa dos vinte anos, começa a sondar seus papéis políticos? Por que ela não adere a hábitos valorizados no passado, como o engajamento num partido ou a leitura de um jornal diário? Como expressa seus desejos de transformação, que parecem desdobrar-se em múltiplas causas e campanhas, às vezes fragmentadas? Que atitudes assumirá, no futuro próximo?
O filósofo Vladimir Safatle é um dos que têm dedicado parte de seu tempo a refletir sobre estas questões. Conhecido de muitos pelas colunas que publica em “Carta Capital” e “Folha de S.Paulo”, ele é, muito mais que isso, um estudioso profundo da herança (e presença…) da ditadura brasileira; e um pensador que, à maneira de Slavoj Zizek, procura articular marxismo renovado com teoria psicanalítica.
Suas reflexões têm produzido interpretações instigantes sobre a nova geração. Ele rechaça, é claro, os pontos de vista superficiais, segundo os quais o fato de não haver “povo saindo às ruas” indicaria uma fase de despolitização. É preciso ir mais fundo, examinar os valores que mobilizam e os que já não encantam; a partir deles é que será possível fazer previsões de longo prazo.
Safatle anima-se, quando se dedica a esta sondagem. Ele destaca que aspirações como ascender socialmente, ser “bem-sucedido” segundo as regras e critérios do sistema, “fazer curso de publicidade ou entrar no departamento de marketing” já não cativam. Há sinais de desconforto social. Busca-se outros encantos e prazeres: talvez, participar em redes de colaboração, contribuir para uma distribuição menos desigual das riquezas produzidas por todos, construir novas relações entre o ser humano e a natureza.
Mais: segundo o filósofo, já é possível vislumbrar o momento em que desaparecerá a cultura do medo disseminada pelo capitalismo após a queda do (mal-)chamado “socialismo real”. Está em xeque, diz ele, a ideia de que “se quisermos grandes mudanças, provocaremos catástrofes” e “só estaremos seguros no presente – por mais que o detestemos e o julguemos insuportável”…
É natural, diz Safatle, que a nova geração busque organizar-se de forma não-tradicional. “Os grandes partidos já não têm força alguma para mobilizar as pessoas. E os pequenos, cobram caro pela mobilização: um tipo de adesão que boa parte dos jovens não está disposta a dar, pelas melhores razões. Eles não querem virar instrumentos para uma lógica partidária”.
À falta de instrumentos eficazes para expressar vontades coletivas, seria o caso de optar exclusivamente pela micropolítica, ou pela ação à margem das instituições? Safatle pensa que não. Ele rejeita fórmulas como a de John Holloway, que propõe uma esquerda totalmente afastada do Estado. Alfineta: “se tal postura prevalecer, os donos do poder irão atrapalhar todas as nossas tentativas de mudar o mundo: não conseguiremos fazer nada”.
Mas propõe-se a sondar saídas. “Há algo no meio do caminho [entre as lutas e as instituições], que você opera pressionando de fora (…) O Estado, os partidos e o parlamento não vão desaparecer. No entanto, você pode operar as estruturas políticas em outras chaves. Forçar a democracia plebiscitária, esvaziar atribuições do parlamento, ativar processos de democracia direta”. Operar o que outros pensadores chamam de “hackeamento das instituições”.
Safatle falou sobre todos estes temas numa longa e preciosa entrevista, feita por três estudantes de jornalismo da PUC – São Paulo. “Outras Palavras” tem a satisfação de publicá-la a seguir (A.M.)

Você consegue imaginar por que é a geração da juventude de hoje, e não a que viveu ou ainda pegou o resto da ditadura, que está promovendo os esculachos contra agentes do regime militar?
Safatle: Porque esta é uma das gerações mais politizadas que tivemos nos últimos trinta anos. Contrariamente ao que algumas pessoas querem nos fazer acreditar, não vivemos num processo irreversível de despolitização juvenil. Acredito exatamente no contrário. Acho que a geração que hoje tem vinte, vinte e poucos anos, é muito mais politizada do que a minha, de pessoas que hoje têm quase quarenta. A minha era de pessoas que tinham como maiores preocupações ascender socialmente no mercado, fazer curso de publicidade, entrar no departamento de marketing… As preocupações políticas eram nulas. Existia todo um discurso de que as ideologias haviam terminado, havíamos chegado ao fim da história e não havia outra forma de vida possível, a não ser a institucionalizada pelas sociedades capitalistas avançadas.
A atual, é uma geração que vive a experiência da crise social, de uma crise econômica mundial (mesmo que o Brasil seja um caso à parte). Há um esgotamento da confiança na democracia parlamentar, a ascensão da extrema direita, o retorno do racismo e da xenofobia: são questões de profunda natureza política. É muito normal que uma parcela de jovens, no Brasil, volte-se para o que resta da ditadura, seu legado, a impossibilidade de saber que há um acerto de contas com os crimes do passado; e que faça mobilizações como as que começamos a enxergar.
Isso também demonstra algo interessante: as sociedades nunca esquecem. Até hoje, fala-se no genocídio armênio, há mais de cem anos. As experiências das ditaduras podem ser simbolizadas, quando você encontra uma inscrição simbólica adequada para este tipo de experiência. Como isso não existiu no Brasil, dá-se um fenômeno descrito por Lacan: o que é expulso do simbólico, retorna no real, e de forma violenta. Como nunca tivemos uma inscrição simbólica da violência da ditadura, ela volta agora sob a forma do desprezo, que várias parcelas da juventude têm a figuras que cometeram crimes contra a humanidade. Estamos falando do uso do aparato do Estado, da tortura, assassinato, estupros, ocultações de cadáver e coisas desta natureza.

Mas esta manifestação civil não chega em uma instância oficial do Estado. Você acha que ela também pode contribuir para que surja um debate sobre o tema?
Safatle: Acho que demonstra claramente a existência de um desconforto social – e é o primeiro passo. O argumento de quem quer esquecer a qualquer custo é que a sociedade já se pacificou e reconciliou, não haveria nenhuma razão de o Estado intervir em um processo resolvido. Essas manifestações demonstram que tudo isso é falso, uma mentira, a reconciliação foi extorquida. A própria Lei da Anistia é um exemplo claríssimo: foi votada só por membros do partido do governo. A oposição não se reconhecia de no projeto. Que tipo de acerto é esse? Conseguiram extorquir a reconciliação, e querem fazer passar a ideia que ela resultou de ampla negociação por debate. Sem contar que as instâncias de justiça de transição, no mundo inteiro, são completamente contrárias à de uma anistia autoconcedida. Os militares concederam anistia para si mesmos. Isso é, em qualquer situação, uma aberração jurídica.
Você acha que o fato de isso aparecer no momento que o estado brasileiro está se organizando para instaurar uma Comissão da Verdade revela um desconforto?
Safatle: É uma maneira de pressionar o debate, tentar impedir que a Comissão da Verdade seja uma farsa, como tudo indica que pode ocorrer. É uma comissão esvaziada, tem apenas sete membros. Vai operar sem poder de mandar material para a Justiça, pois, a princípio, sua função é descobrir o que realmente aconteceu. Essa é uma questão importantíssima: não sabemos o que aconteceu. “Existem quatrocentos e poucos mortos”. Quem disse que foram quatrocentos e poucos? Isso foi o que a gente conseguiu descobrir.
Num processo de Comissão da Verdade, os crimes vão aparecendo. Quem nos garante que não aconteceu no Brasil algo como na Argentina: sequestro de crianças, essa brutalidade que é, para mim, o pior dos crimes. Entrega-se os filhos dos torturados para os torturadores. Corta-se a possibilidade de memória da dor. Esse lado maquiavélico da ditadura argentina coincide com a pior experiência do nazismo. Primo Levi dizia que a pior frase que ouvira, quando estava no campo de concentração, era a de um oficial nazista: “tudo o que a gente fez é tão inacreditável, que ninguém vai ouvir ou acreditar no que você disser. E a gente vai apagar todos os rastros”.
Você percebe uma mudança na forma, na estética dos esculachos para os movimentos na época da ditadura?
Safatle: Com certeza. Você tem a identificação clara de um indivíduo e uma pressão, um movimento claro de desprezo. É um recado: “você pode conseguir segurar algumas coisas na imprensa e escapar de tudo, menos do o desprezo social”. É completamente distinto das manifestações que ocorreram no período militar, de luta contra um aparato repressivo. Temos agora consciência de como o reconhecimento social é central na vida política. Retira-se o reconhecimento social ao dizer: “Você não pode ser um cidadão de plenos direitos. Você é um criminoso”.
Você enxerga uma relação entre a mudança de ativismo no Brasil e o movimento Occupy, que propõe uma nova forma de se manifestar?
Safatle: Há algo em comum: todos estes movimentos são feitos à margem de partidos. As estruturas partidárias – pelo menos as grandes – não têm mais força alguma parra mobilizar as pessoas. E os pequenos partidos cobram caro pela mobilização: um tipo de adesão que acredito que boa parte dos jovens não está disposta a dar, pelas melhores razões. Eles não querem virar instrumentos para uma lógica partidária. Essas mobilizações se fazem em torno de temas: você se organiza para certos objetivos, cria estruturas ou fóruns ligados a eles; depois, eles se dissolvem. É bem provável que isso seja cada vez mais utilizado.
O Occupy forneceu um modelo para este tipo de processo. Mas… o que eles conseguiram? Francamente, não é esta a questão. O ponto de vista por trás de tal pergunta é muito rasteiro. “ – Deu um resultado logo em seguida? – Não. – Então, não deu resultado algum”.
Não faz sentido: às vezes os resultados precisam de anos. Um primeiro movimento produz um desdobramento aqui, outro ali… Lá na frente, anos depois, você vai enxergar resultados mais concretos. Essa visão de ato e reflexo, bate aqui e vê se acontece alguma coisa ali, é a antipolítica por excelência. Acho que os movimentos foram muito bem-sucedidos. Eles tensionaram um acordo que parecia intocável, forneceram o modelo de um processo de mobilização e isso não terminou.
No Chile há, até hoje, grandes manifestações sobre a educação, 400 mil pessoas nas ruas contra o governo, por uma escola pública de qualidade. O processo é mesmo lento, ninguém ache que vai conseguir modificar o tabuleiro do xadrez do debate político de um dia para a noite, mas toda grande caminhada começa com um passo – e ele foi dado.

Penso numa frase de Deleuze, segundo a qual os jovens necessitam muito ser motivados. Nossa geração pede isso. Você não acha que falta uma noção maior do que tudo isso representa?
Safatle: Isso é muito normal, porque tivemos um esgotamento das grandes explicações. Não porque estivessem completamente erradas, mas estavam parcialmente erradas. Não deram conta de uma série de processos ocorridos nos últimos vinte, trinta anos. É normal que você precise reconstruí-las agora, em novas bases. Aquilo que um dia Jean-François Lyotard chamou das grandes metanarrativas. Tem um lado certo e um errado, da crítica que fazia. Ele disse que as grandes metanarrativas, a ascensão proletária, o movimento revolucionário, a teleologia histórica, isso tudo era um grande equívoco.
Eu diria que não foi um pequeno equívoco. Você não pode abandonar perspectivas de largo desenvolvimento histórico. Do contrário, os acontecimentos ficam completamente opacos, você torna-se incapaz de enxergá-los. Os fatos parecem vir no ritmo do acaso, da completa contingência.
No entanto, existe o espaço da contingência. Ou seja, há acontecimentos completamente imprevisíveis, que exigem uma reformulação ampla dessa perspectiva de análise histórica. Isso não aconteceu. Eu diria que uma tarefa atual é compreender o lugar da contingência no interior de uma dinâmica onde a necessidade vai se construindo. Ninguém enxerga muito bem o que está acontecendo, isso só é possível depois. Em certos momentos da história, algumas pessoas conseguem mobilizar mais e dizer: “vejam, existe uma abertura, um desfiladeiro. A gente consegue passar por aqui”.
Falta acreditar que os processos abertos não necessariamente terminam em catástrofe. A gente absorveu muito essa ideia: se quisermos grandes mudanças, provocaremos catástrofes. Segundo tal lógica, só estaríamos seguros no presente – por mais que o detestemos e o julguemos insuportável. Espero que esse raciocínio desapareça o mais rápido possível. Ele expressa a cultura do medo: você não projeta nada para frente. Você se rende ao presente.

Nos momentos de crise, há tanto busca de novos referenciais, quanto retorno do autoritarismo. Num país como o Brasil, em que as correntes conservadoras são muito fortes, não há risco de que esta segunda posição prevaleça?
Safatle: Essa é uma luta que existe no Brasil hoje. Nosso debate político é hoje cultural. Os projetos econômicos são mais ou menos iguais. Existem distinções, mas não são enormes, reais. Ninguém prega grandes reformas. Nenhum partido importante sugere: “vamos fazer uma democracia plebiscitária”. Há um grande consenso.
Onde está o debate político? Está no campo da cultura, dos costumes, dos hábitos. O aborto virou um dos temas mais importantes do Brasil. Casamento homossexual, todos os outros problemas ligados à modernização dos costumes.
Isso tem um lado bom. A gente está brigando por formas de vida distintas. Mas isso também demonstra que o debate centrado na cultura sempre tocou muito mais os jovens e sempre é um debate da esquerda. Hoje, há uma direita cultural, um pensamento cultural de direita forte, conservador, que consegue mobilizar camadas da juventude. Julgo isso algo muito grave, mas lembro que é característica de todos os processos históricos ricos: a juventude dividindo-se ao meio. Há uma ala conservadora, outra progressista. Na época da ditadura militar, esse processo era muito claro.
A França viveu uma eleição agora. Um partido de extrema-direita ficou em terceiro lugar – e em primeiro, nos votos dos jovens entre 18 e 25 anos. Por que? Eles trazem questões culturais: imigração; nossos valores; nossa forma de vida; nossa religião contra a religião “atrasada” dos “outros. São debates que estão, de uma maneira ou de outra, chegando no Brasil. A gente precisa se preparar para isso, também. Para uma divisão que vai ocorrer, de maneira cada vez mais forte. Não há como escapar dela.

Você conseguiria apontar quais são alguns agentes dessa direita cultural?
Safatle: Existe uma proliferação de blogues de extrema-direita no Brasil, que a juventude lê. São colunistas de jornal, que se assumem claramente como conservadores. Isso não deve ser negligenciado: é um fenômeno que veio para ficar.
Significa o quê? Que o debate cultural deve ser feito com toda a força. A discussão sobre a memória é um aspecto decisivo. Que tipo de sociedade queremos? Uma sociedade que acredita que, esquecendo crimes do passado, você tem um presente melhor? Uma sociedade que tem medo de fazer memória? Onde você publica um artigo sobre a ditadura na internet, e surgem 150 pessoas comentando como era fantástica a vida naquele tempo, como pelo menos não tinha corrupção?
Há um preceito liberal que se chama “Direito de Resistência”. Não está em Lênin, mas em Locke, que era a favor do tiranicídio. Dizia: “se um tirano usurpa os seus direitos, as liberdades individuais e as liberdades sociais, ele merece a morte”. Isso está também no Rousseau – ou seja, na tradição liberal do pensamento político. Se algumas pessoas têm a coragem de usar a famosa teoria dos dois demônios,segundo a qual havia terroristas de esquerda e de direita, elas colocam-se aquém da perspectiva liberal de política.
Que tipo de sociedade essas pessoas procuram realizar no presente? Penso que não é mais possível admitir mais esse tipo de situação. Eles querem dizer que, mesmo numa ditadura, a violência contra o Estado não é aceitável. Para mim, é uma das proposições mais antidemocráticas que se possa imaginar. Na década de 1920, greve era um crime. Mas foi graças a esse crime que os direitos trabalhistas foram universalizados.
Uma esquerda mais clássica, organizada em partidos, fala numa disputa entre hegemonia e contra-hegemonia – e sugere disputar instituições como a mídia, o governo, o parlamento. Este tipo de opinião pode enfraquecer os movimentos da juventude que procuram uma saída não-institucional e novas formas de política?
Safatle: Acho que não – e é um ótimo tema. Há momentos em que você precisa saber como se organizar institucionalmente. A Primavera Árabe demonstra isso claramente. Começou, sempre, com movimentos jovens: na Tunísia, diplomados desempregados; no Egito, o movimento 6 de Abril, composto por jovens de várias tendências políticas. Conseguiram resultados imediatos mas, na hora de gerir o processo, não existia uma estrutura institucional, uma organização. Quem colheu todos os frutos do processo foram  os partidos islâmicos, mais organizados e com capilaridade popular.
Qual o modelo de organização para grupos que não admitem o partido como a figura clássica de organização? Uma nova estrutura política? Frentes mais flexíveis? É algo que precisaremos, em algum momento, responder. Do contrário, todas as estruturas institucionais serão dominadas por aqueles que já sabem operá-las. E elas não vão desparecer. O Estado, as eleições, os sindicatos não vão desaparecer.
Novas instituições poderiam superar as que existem agora? Poderíamos imaginar a fundação de um novo Estado e uma nova forma sociedade? Ou é muita pretensão?
Safatle: Sempre fui firmemente contrário ao slogan “mudar o mundo sem tomar o poder”, de John Holloway. Os donos do poder agradecem: se tal postura prevalecer, irão atrapalhar todas as nossas tentativas de mudar o mundo: não conseguiremos fazer nada.
Não existe política completamente à margem da estrutura institucional, da mesma maneira como não se pode fazê-la só dentro das instituições. Há uma região limítrofe, que é necessário saber operar. Precisamos ir além do pensamento binário, do “ou  totalmente fora, ou totalmente dentro”. Há algo no meio do caminho, que você opera pressionando de fora. Isso, ainda não conseguiu constituir. Só há um grupo que conseguiu fazer isso: os lobistas. Os lobbies estão semi-institucionalizados. Operam de fora, forçando a estrutura institucional. É necessário uma espécie de lobby popular, que seja contraponto ao lobby econômico.
Pensei no texto “O que é ser contemporâneo?”, do Giorgio Agamben. Ele sugere reconhecer a época em que vivemos, assumir que ela tem instituições, e ao mesmo tempo negá-la, querer deixá-la. É isso que inspira a juventude?
Safatle: Sim, com certeza existe essa região limítrofe que é necessário saber operar. Volto a insistir: o Estado, os partidos e o parlamento não vão desparecer. No entanto, você pode operar as estruturas políticas em outras chaves. Forçar a democracia plebiscitária, esvaziar atribuições do parlamento, transferir decisões para a população, ativando processos de democracia direta.
Qual é a estratégia de desmobilização? É dizer: “ou você está dentro do Estado de Direito, ou você está fora; ou aceita a estrutura institucional tal como ela é hoje, ou está completamente fora e portanto faz apologia da ditadura”. Não existe isso.
Você pode perfeitamente admitir que algumas estruturas vão continuar e, ao mesmo tempo, construir processos de transferência direta de poder. Esse me parece o grande desafio ao pensamento político atual. Como a gente constrói, como dá figura para as demandas de democracia real? Há muitos exemplos. Um deles: a Islândia foi um dos primeiros países a mergulhar na crise econômica europeia. Bancos islandeses tomaram dinheiro emprestado nos Países Baixos e Inglaterra. Quando quebraram, a Inglaterra e os Países Baixos apresentaram a conta ao governo islandês: os bancos eram privados, mas a conta foi para o Estado. O parlamento se dobrou, aceitando a conta bilionária. A população – pequena, em torno de 250 mil habitantes – teria de pagar durante cinquenta anos a dívida dos bancos.
Bem, havia um presidente, um pouco mais sensato, que lembrou uma regra da Constituição islandesa, segundo a qual os presidentes têm o direito de consultar a sociedade, antes de promulgar leis. Convocou-se um plebiscito: o povo foi chamado a votar se queria ou não pagar a dívida. Pode-se imaginar o terrorismo: em caso de não-pagamento, dizia-se, o país iria converter-se em pária internacional.
Mas o povo disse não. Hoje, a Islândia está melhor do que todos os outros países que entraram na crise à mesma época: Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda. Isso ensina que é possível politizar a economia, tirar poderes indevidos. Alegar que um parlamento sozinho não pode decidir uma questão tão central como essa. Um parlamento é composto de pessoas que têm as eleições pagas por bancos… O parlamentar deve para o banco: há uma nova eleição daqui a quatro anos e ele sabe que, se votar contra, não tem mais financiamento, não vai ser reeleito. Como uma pessoa dessas pode tomar esse tipo de decisão?

Mas no caso da Espanha, por exemplo, os indignados não conseguiram construir alternativas como essa. O movimento caminha nessa direção?
Safatle: Na Islândia, já havia o mecanismo institucional. Tiveram a sorte de contar com um presidente um pouco mais sensato, que deu realidade ao processo. Mas é um dado extremamente interessante, porque pode ser transformado em bandeira: “quero que na Espanha a lei islandesa seja aplicada”. É possível fazer o mesmo em várias outras situações. Você tensiona o debate. Os conservadores reagirão: “a população não pode decidir sobre essas coisas, são muito complexas, só tecnocratas têm que decidir”.
“Mas, então, fala, fala na nossa frente: só tecnocrata de banco vai decidir o que vão fazer com o nosso dinheiro?” Vamos ver o que vai acontecer. Este é um recurso muito importante: você obriga o poder a falar os seus absurdos, que ele normalmente não tematiza. Todo mundo sabe que quem decide é tecnocrata, mas ninguém fala. Quando certas coisas são ditas, algo acontece, mesmo que exista um acordo tácito entre as pessoas. Por isso, uma questão política central é obrigar o poder a falar, colocá-lo contra a parede.

*Estudantes de jornalismo da PUC-SP e colaboradores de Outras Palavras

Censura, obscurantismo e golpe cívico-militar de 1964

No Brasil republicano, em especial (mas não somente) durante a ditadura militar de 1964-85, a censura imperou em todos os meios de comunicação. Antes, na maior parte do período colonial, o Brasil sequer podia ter uma gráfica. Mas, contra esses fatos, sempre houve o contraponto – revolucionários e intelectuais que chegaram a dar a própria vida na luta pela liberdade.
No Brasil, a Comissão da Verdade está começando a fazer seu trabalho na investigação à tortura e violação dos direitos humanos. Já de algum tempo, alguns estudiosos fizeram levantamentos sobre a censura no cinema, na música, no teatro, no rádio e na televisão.
A tesoura tresloucada: análise de pareceres inéditos revela os mecanismos da censura a livros durante a ditadura.
Em dezembro do ano passado, a Edusp/Fapesp lançou Repressão e Resistência: Censura de Livros na Ditadura Militar, de Sandra Reimão, analisando este setor específico de comunicação.
A autora constatou, na documentação que encontrou de uma lista de quase 500 livros, de ficção ou não, submetidos ao Departamento de Censura e Diversões Pública da ditadura, que cerca de 140 eram de autores nacionais, dos quais 70 foram proibidos. Ela considerou mais emblemáticas a censura aos romances e contos Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca; Zero, de Inácio de Loyola Brandão; Dez Estórias Imorais, de Aguinaldo Silva; Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós; Mister Curitiba, de Dalton Trevisan; e O Cobrador, de Rubem Fonseca. Dos estudos e análises proibidos pelos ditadores, ela destacou O Mundo do Socialismo, de Caio Prado Jr.; A Universidade Necessária, de Darcy Ribeiro; A Mulher na Construção do Mundo Futuro, de Rose Marie Muraro; O Despertar da Revolução Brasileira, de Márcio Moreira Alves; História Militar do Brasil, de Nelson Werneck Sodré; e O Poder Jovem, de Arthur José Poerner.
Não apenas obras, mas também editoras foram fechadas ou perseguidas pelos militares. Logo no dia 3 de abril de 1964, os golpistas fecharam a Editorial Vitória, do Partido Comunista Brasileiro, PCB. Em entrevista ao Jornal da ABI, edição de maio de 2012, Sandra disse que, do golpe até o Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, “a censura a livros no Brasil foi marcada por uma atuação confusa e multifacetada e pela ausência de critérios, mesclando batidas policiais, apreensões, confiscos e coerção física”.
Em 26 de janeiro de 1970, os ditadores baixaram o Decreto-Lei 1.077, assinado pelo general Emílio G. MédIci e pelo ministro Alfredo Buzaid, considerando que a Constituição não tolerava “publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes” e que era necessário “proteger a instituição da família, preserva-lhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade”. Os donos do poder vituperavam “algumas revistas” que faziam “publicações obscenas” e programas de televisão “contrários à moral e aos bons costumes”. Atacavam também livros que ofendiam “frontalmente à moral comum”, insinuavam “o amor livre”, assim ameaçando “destruir os valores morais da sociedade brasileira”. Por trás de tais obras estava “um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional”. Era ordenado, então, que o Departamento de Polícia Federal não tolerasse “as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação”. Para isso, a polícia ficava incumbida de “verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria” que fosse “ofensiva à moral e aos bons costumes”. Publicações vindas do estrangeiro também ficavam sujeitas à verificação. Os infratores, além da responsabilidade criminal, ainda seriam multados e obrigados a queimar os exemplares da publicação.
A pesquisadora diz que os censores faziam “uma correlação clara entre a destruição dos valores morais e a segurança nacional”. Devido ao protesto de escritores como Jorge Amado e Érico Veríssimo, os governantes liberaram de avaliação prévia as obras “de caráter estritamente filosófico, científico, técnico e didático, bem como as que não versarem sobre temas referentes a sexo, moralidade pública e bons costumes”. No entanto, continuaram perseguindo autores e editores, prendendo-os ou impossibilitando a continuidade das empresas editoriais, valendo-se da pressão econômica, como fizeram com Ênio Silveira e sua Editora Civilização Brasileira, que será assunto do próximo artigo.
Carlos Pompe

Argumentos em prol da entrada da Venezuela no Mercosul

As razões que fundamentam a entrada da Venezuela no Mercosul 
I-Antecedentes: o Isolamento Histórico da Venezuela e o Progressivo Adensamento das Relações Bilaterais Brasil/Venezuela
 A Venezuela, com 912.000 Km² e cerca de 26 milhões de habitantes, foi um dos três países que surgiram com o desmembramento, em 1830, da Grande Colômbia, a qual agregava, além da Venezuela, o Equador e a atual Colômbia.
Embora tenha se constituído num dos polos de propagação dos movimentos de independência dos países da América do Sul, graças à ação do Libertador Simon Bolívar, o Estado nacional da Venezuela demorou a consolidar-se. Com efeito, ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX, a Venezuela foi marcada por sua economia agrário-exportadora e uma população rarefeita, muito concentrada na costa do Caribe, bem como por inúmeros conflitos entre caudilhos que debilitavam a hegemonia política e territorial da sua elite agrária e militar.
Tais fatores, além de impedir a formação de um Estado nacional e sua consequente projeção de interesses no cenário internacional, fizeram com que a Venezuela perdesse parte de seu território original para outros países, em especial para a Inglaterra, que se apoderou da região de Essequibo, atualmente uma província da Guiana.
Essa situação começou a mudar no governo de Juan Vicente Gómez (1908-1935), quando foi iniciada a prospecção e produção de petróleo em larga escala. A renda gerada pela produção e exportação de hidrocarbonetos possibilitou a construção de uma infraestrutura viária e portuária, assim como permitiu a implantação de aparelho de Estado centralizado, que substituiu uma administração fragmentada e difusa. Contudo, essa consolidação do Estado Nacional venezuelano embasou-se na exportação de petróleo para o mercado norte-americano, o que levou à Venezuela a desenvolver “relações privilegiadas” com os EUA. Tal vinculação econômica e política marcou profundamente a política externa da Venezuela.
Na década de 50 do século passado, a Venezuela já havia se convertido no segundo produtor e no primeiro exportador mundial de petróleo. No entanto, essa notável afluência econômica, obtida numa relação de estreita dependência com os EUA, não se refletia na diminuição de suas graves desigualdades sociais, na diversificação de sua estrutura produtiva e na implantação de um regime democrático estável.
Tal situação mudou parcialmente com a celebração do Pacto de Punto Fijo, em 1958, quando se encerrou o longo período de regimes militares. Mediante tal pacto, a Ação Democrática (AD, de orientação socialdemocrata) e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI, de tendência democrata-cristã) alternavam-se no poder, gerando um sistema político eleitoral essencialmente bipartidário. Esse sistema assegurou uma estabilidade democrática formal, que contrastava com o resto da América Latina, mas que não propiciava mudanças nas estruturas sociais e econômicas do país.
A estabilidade democrática, ainda que conservadora e formal, a afluência econômica proporcionada pelo petróleo e as relações privilegiadas com os EUA, mesmo que eventualmente contraditórias e tensas, fizeram com que Venezuela se isolasse parcialmente do restante da América do Sul.
Na década de 60, esse relativo isolamento foi exacerbado pela aplicação, no plano das relações externas venezuelanas, da chamada Doutrina Betancourt, criada pelo chanceler Rómulo Betancourt. De acordo com essa doutrina, a Venezuela deveria restringir o estabelecimento ou a manutenção de relações diplomáticas apenas a países que tivessem governos eleitos democraticamente conforme regras constitucionais estáveis. Criada em parte para agradar os EUA, pois justificava o isolamento diplomático de Cuba, a doutrina Betancourt, porém, complicou as relações com vários vizinhos da Venezuela aliados de Washington, inclusive o Brasil.
A aplicação estrita da Doutrina Betancourt revelou-se, assim, contraproducente, e a Venezuela passou a flexibilizar a sua aplicação, já ao final da década de 60.
Mas o isolacionismo da Venezuela, que aderiu tardiamente ao GATT e à Comunidade Andina, só começou a ser efetivamente revisto na década de 80, quando a relativa abundância de petróleo no mercado internacional, que fez diminuir o preço dessa commodity, somada à crise da dívida, que viria a atingir fortemente aquele país ao final do decênio, produziu uma mudança na estratégia de sua política externa. De fato, a política externa isolacionista, baseada na noção de uma suposta superioridade político-democrática, na afluência econômica do petróleo e nas relações privilegiadas com os EUA, principal comprador dessa commodity, passou a ser substituída progressivamente por uma estratégia de inserção no cenário externo mais realista, na qual o Caribe e a América do Sul passaram a ter lugar de destaque.
Em relação especificamente ao Brasil, a progressiva aproximação foi facilitada por fatores históricos e geográficos. Em primeiro lugar, a fronteira da Venezuela com o Brasil, a mais extensa daquele país (2.199 km), foi estabelecida definitivamente por um tratado de 1859. Assim ao contrário do que ocorreu com seus outros vizinhos, Colômbia e Guiana, a Venezuela nunca teve disputas territoriais com o Brasil. Em segundo, as relações bilaterais, à exceção do breve período da aplicação estrita da Doutrina Betancourt, sempre foram cordiais, embora pouco densas para a sua potencialidade.
Entretanto, o fator desencadeador do adensamento das relações bilaterais Brasil/Venezuela foi a necessidade conjunta de desenvolver e povoar a região amazônica, compartilhada por ambos os países. De um lado, o Brasil tinha o programa da Calha Norte, que seria posteriormente complementado pelo SIPAM e pelo SIVAM. De outro, a Venezuela tinha o PROSESSUR, com os mesmo objetivos estratégicos. Essa necessidade estratégica compartilhada por Brasil e Venezuela fez surgir planos bilaterais de integração energética, com o intuito de enfrentar os gargalos de infraestrutura para o desenvolvimento de suas fronteiras amazônicas. Dessa forma, as estatais EDELCA e ELETROBRAS passaram negociar contratos em 1993, com base em estudos feitos por um Grupo de Trabalho sobre Energia. Verificou-se que os rios amazônicos da Venezuela, com quedas d’água de potencial hidroelétrico superior, dada à presença próxima do planalto venezuelano, permitiriam fornecimento de energia venezuelana para o norte brasileiro, como de fato foi feito posteriormente.
Também no mesmo ano (1993), a Fundação Alexandre Gusmão FUNAG e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais-IPRI, órgãos pertencentes ao Itamaraty, elaboraram, com a colaboração de especialistas de ambos os países, um diagnóstico bastante aprofundado das potencialidades da cooperação bilateral Brasil/Venezuela. Os resultados desse diagnóstico foram muito encorajadores, face à complementaridade das economias daquele país e do Brasil. Com efeito, a Venezuela, embora tenha abundância de petróleo e gás natural, tem uma economia pouco desenvolvida em certos setores industriais importantes, como máquinas e equipamentos, automóveis e bens de capital em geral, setores nos quais a economia brasileira é bem mais competitiva. Do ponto de vista do Brasil, a integração com a Venezuela permitiria o equacionamento de suas necessidades energéticas, facilitaria o desenvolvimento da região amazônica, de grande interesse estratégico, e criaria um corredor de exportação para o Caribe. Sob a ótica da Venezuela, a integração com o Brasil ensejaria a diversificação da sua estrutura produtiva, diminuindo a sua dependência econômica das exportações de petróleo e sua dependência política dos EUA. Desse modo, foram feitos planos para a integração da Petrobrás e PDVSA, a comunicação física de linhas de transmissão de energia elétrica (Manaus-Elétrica Del Guri) e a construção de estradas e pontes para conectar ambas as nações. 
Vislumbrava-se, portanto, já naquela época, que a aproximação entre ambas as nações era inteiramente conveniente aos seus interesses maiores e que a cooperação poderia estar solidamente alicerçada em projetos econômicos, comerciais, de integração energética, de transportes e mesmo geopolíticos.
Em 1994, foi dado um grande passo para a aproximação entre Brasil e Venezuela. Os presidentes Rafael Caldera e Itamar Franco, reunidos na Venezuela, firmaram o Protocolo de la Guzmania, que traçou diretrizes e parâmetros para uma moderna cooperação bilateral.  Mediante tal protocolo, formulou-se uma tríplice estratégia de concertação entre ambos os países. Previa-se o desenvolvimento de ações na zona de fronteira, com o intuito de assegurar a ocupação e o desenvolvimento da região amazônica, o estímulo ao comércio e aos investimentos, assim como ações comuns destinadas à criação de uma zona de livre comércio na América do Sul.
Esse adensamento das relações bilaterais Brasil/Venezuela, iniciado no governo Itamar Franco, foi consideravelmente ampliado e consolidado ao longo dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso. Com efeito, naquele período foram feitos, de acordo com relatórios do próprio Itamaraty, os seguintes avanços no campo das relações bilaterais Brasil/Venezuela:
    1. construiu-se uma agenda ampla e diversificada, na qual se destacavam as iniciativas em matéria de integração física e energética, desenvolvimento fronteiriço, cooperação em meio ambiente e reativação do Conselho empresarial, entre outros campos;
    2. estabeleceu-se nova moldura institucional para o encaminhamento de tais iniciativas, na forma da Comissão Binacional de Alto Nível (presidida pelos Chanceleres) e de seus Grupos de Trabalho, bem como do Mecanismo Político de Consultas (em nível de Vice-Chanceleres);
    3. ampliou-se o intercâmbio comercial, com destaque para as compras de petróleo venezuelano, que passaram a situar a Venezuela como um dos principais fornecedores ao Brasil;
    4. iniciou-se e concluiu-se a construção das linhas de transmissão de energia elétrica entre a Venezuela e o Estado de Roraima;
    5. concluiu-se a pavimentação da BR-174, que liga Manaus ao Caribe, possibilitando a criação de um corredor de exportação de grande relevância para a Região Norte do País
    6. foram iniciadas as tratativas para a criação de uma área de livre comércio entre a Comunidade Andina e o MERCOSUL.No que tange especificamente à entrada da Venezuela no MERCOSUL, cumpre destacar que já em sua primeira viagem como mandatário supremo à Venezuela, em julho de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, em discurso proferido no parlamento venezuelano, que:
O MERCOSUL começa a identificar novos parceiros na América do Sul, onde estamos negociando formas de aproximação com a Venezuela, o Chile e a Bolívia, além do conjunto inteiro do Pacto Andino. Entre essas áreas, com sentido de prioridade (grifo nosso) dada pela vizinhança e pela intensidade da agenda, a aproximação com a Venezuela é natural.
Percebe-se, dessa forma, que a vontade política de integrar progressivamente a Venezuela ao MERCOSUL era manifestada pelo Brasil desde aquela época. De sua parte, a Venezuela também manifestou, no mesmo ano (1995), seu interesse de aproximar-se ao MERCOSUL e formar uma estratégia dirigida a construir um mercado comum sul-americano, “antes do prazo estabelecido para a construção da área de Livre Comércio das Américas (ALCA), ou seja, antes de 2005”.
Deve-se ter em mente que o adensamento das relações diplomáticas bilaterais e os passos para integrar a Venezuela ao MERCOSUL continuaram celeremente no último governo de Fernando Henrique Cardoso, após a eleição do atual presidente Hugo Chávez.
Em apenas 18 meses (entre dezembro de 1998 e abril de 2000), o Presidente Fernando Henrique Cardoso manteve com o Presidente Hugo Rafael Chávez Frias nada menos que cinco encontros. Em dezembro de 1998, ainda na qualidade de Presidente eleito, Hugo Chávez visitou o Brasil para reiterar seu propósito de dar continuidade e intensificar a política do seu antecessor, Presidente Rafael Caldera, de aproximação com o Brasil. Apenas seis meses depois, em maio de 1999, Chávez fez sua primeira visita oficial ao Brasil, ocasião em que foram examinados todos os temas relevantes de uma longa agenda bilateral, inclusive os relativos à integração energética e à construção e pavimentação da BR 174. Em junho de 1999, houve encontro à margem da Cimeira América Latina/Caribe-União Europeia, que possibilitou o intercâmbio de ideias sobre as conjunturas regional e internacional, bem como sobre a criação de uma área de livre comércio entre a Comunidade Andina e o MERCOSUL. Em 4 de setembro de 1999, o encontro de trabalho mantido pelos dois mandatários na cidade de Manaus deu continuidade ao que o Itamaraty definiu como “intensa relação entre os dois países e nível elevado de aproximação e cooperação”. Por fim, o Presidente brasileiro realizou visita oficial à Venezuela nos dias 6 e 7 de abril de 2000.
Por seu turno, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, deu novo e definitivo ímpeto ao processo iniciado pelo governo Itamar Franco. Tal ímpeto foi ocasionado por certa convergência conceitual, no plano estratégico das atuais políticas externas de Brasil e Venezuela.
De acordo com o professor Amado Cervo, tal convergência se estabeleceu em virtude da adoção dos seguintes parâmetros de política externa em ambos os países:
a) o conceito de globalização benéfica como correção ao conceito neoliberal de globalização assimétrica;
b) o conceito político e estratégico de América do Sul integrada
c) o reforço do núcleo central robusto da economia nacional como condicionante da interdependência global;
d) a prévia integração da América do Sul como condicionante da integração hemisférica
e) a percepção de nocividade da Associação de Livre Comércio das Américas-ALCA, caso se estabeleça sem os condicionamentos anteriores e sem a reciprocidade comercial efetiva;
f) a reserva ante o aspecto militar do Plano Colômbia;
g) o repúdio a qualquer presença militar norte-americana na Amazônia; e
h) a decisão de não privatizar o setor petrolífero
Porém, essa convergência conceitual no plano das políticas externas, embora relevante, não representa o que há de substancial e decisivo na incorporação da Venezuela ao MERCOSUL. De fato, os fatores substanciais e decisivos são os interesses objetivos e pragmáticos dos Estados Partes do bloco, particularmente os do Brasil e da Venezuela. Nesse sentido, foi a paciente construção histórica de interesses econômicos, comerciais e geopolíticos comuns, consubstanciados em vários projetos já concluídos e em andamento, que pavimentou a entrada da Venezuela no Mercado Comum do Sul.
Assim sendo, pode-se dizer que a inclusão da Venezuela no MERCOSUL é, sob a ótica dos interesses brasileiros, apenas a culminação de um longo processo de adensamento das relações bilaterais Brasil/Venezuela iniciado no governo Itamar Franco, consolidado no governo Fernando Henrique Cardoso e concluído na administração de Luiz Inácio Lula da Silva. Portanto, a adesão da Venezuela ao MERCOSUL não tem nada de intempestiva e tampouco resulta de uma decisão política sem substrato econômico, comercial e histórico, como afirmaram alguns.
II- Os interesses objetivos que fundamentam a inclusão da Venezuela no MERCOSUL
Não obstante essas constatações, é necessário reconhecer que o debate sobre a entrada da Venezuela no MERCOSUL, sempre oportuno numa democracia, sempre esteve um tanto distorcido. Com efeito, esse debate, que deveria ter como parâmetro essencial os interesses estratégicos dos Estados Partes e do próprio bloco, foi e vem sendo conduzido, por vezes, com base em posições ideológicas, não raro marcadas pelo emocionalismo e o desconhecimento.
Alguns argumentam que o Brasil não deveria permitir que Hugo Chávez, um líder supostamente “populista” que pratica “políticas heterodoxas”, ingresse no MERCOSUL e “perturbe” o funcionamento desse bloco econômico. Outros questionam se o atual regime político da Venezuela é compatível com o compromisso democrático do MERCOSUL, inscrito no Protocolo de Ushuaia. Dessa forma, há aqueles que colocam em dúvida o mérito e a oportunidade do presente ato internacional.
Ora, é necessário considerar que acordos internacionais, como o Protocolo de Adesão da Venezuela ao MERCOSUL, são celebrados por Estados com fundamento em seus interesses de longo prazo. Nesse processo jurídico-diplomático, governos são circunstanciais. Os compromissos de política externa constituem-se, por definição, em compromissos de países. Assim, quem está aderindo ao MERCOSUL não é o atual governo venezuelano, mas sim a Venezuela, país vizinho com o qual o Brasil sempre manteve boas relações, hoje profundamente adensadas.  A inclusão da Venezuela no MERCOSUL não é, ou pelo menos não deveria ser, um plebiscito sobre o governo Chávez.
Além disso, do ponto de vista dos interesses objetivos brasileiros deve-se constatar que o País já está sendo muito beneficiado pela aproximação recente à Venezuela.
Do ponto de vista da indústria e da agricultura brasileiras, a entrada da Venezuela no MERCOSUL deverá propiciar uma oportunidade única, porque abre as portas para um mercado rico, em que nossos produtos têm fortíssima demanda. O incrível crescimento das exportações do Brasil para a Venezuela e dos investimentos públicos e privados efetuados em âmbito bilateral, ocorrido nos últimos anos, dão uma mostra do potencial dessa relação. Entre 2003 e 2008, as exportações brasileiras para a Venezuela passaram de US$ 608 milhões para 5,15 bilhões, um crescimento de 758% em apenas 5 anos. Além da quantidade, é preciso também ressaltar a qualidade desse comércio. Cerca de 72% das nossas exportações para a Venezuela são de produtos industrializados, com elevado valor agregado e alto potencial de geração de empregos. Em 2009, o Brasil tem com a Venezuela seu maior saldo comercial: US$ 4,6 bilhões dólares, 2,5 vezes superior ao obtido com os EUA (US$ 1,8 bilhão). No ano passado (2011), mesmo com a crise, obtivemos US$ 3,3 bilhões de superávit comercial com a Venezuela.
No campo dos contratos existentes e projetados entre empresas brasileiras e venezuelanas, o montante agregado ascende hoje a US$ 15 bilhões – cifra notável. Estão presentes no país grande empresas brasileiras, como a Odebrecht (contratos de mais de 10 bilhões de dólares, que incluem obras de construção de 80 km do metrô de Caracas, da ponte sobre o Orinoco, projetos agropecuários); Camargo Corrêa (contratos de US$ 1 bilhão), Andrade Gutierrez (contratos de US$ 4 bilhões). Além disso, várias outras empresas têm investimentos, como a Gerdau (92 milhões de dólares) e a Braskem (1,5 bilhões de dólares). Há projetos bilaterais de enorme vulto em execução, como o da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco e o da construção do metrô de Caracas, que poderão ser significativamente robustecidos.
Ao realizar investimentos no exterior, o Brasil começa a ganhar perfil de país desenvolvido. O espaço para esse processo de transnacionalização das empresas nacionais é, sobretudo, os países em desenvolvimento de elevada renda – exatamente como a Venezuela. Os demais mercados seja não têm renda suficiente, seja estão saturados pela concorrência de transnacionais de outros países. Graças à sua receita petroleira, a Venezuela conta com grandes fundos de desenvolvimento, como o Fondo de Desarrollo Nacional, atualmente com recursos de US$ 17 bilhões, que têm financiado empresas brasileiras.
Alguns opinam que o comércio Brasil-Venezuela cresceu muito nos últimos dez anos graças a uma herança de preferências que pertenciam ao Pacto Andino que deixaram de viger quando a Venezuela deixou a Comunidade Andina. As preferências que pertenciam ao Pacto Andino não deixaram de viger, uma vez que a saída da Venezuela somente passará a produzir efeitos transcorridos cinco anos da denúncia do Acordo, ou seja, a partir de dezembro de 2010. Na realidade, o crescimento do comércio Brasil-Venezuela está muito menos vinculado a preferências comerciais do que ao quadro mais geral da relação política bilateral. O Acordo de Complementação Econômica MERCOSUL-Venezuela (ACE-59), em vigor desde 2004, não permitiu um aumento equânime das exportações da Argentina e do Brasil para a Venezuela: enquanto a Argentina não exporta mais do que US$ 1,5 bi para a Venezuela, as exportações brasileiras já passaram dos US$ 5 bilhões em 2008.
Isso requer que destaquemos as razões que levaram a Venezuela a privilegiar o Brasil como novo parceiro. Em particular no Governo Chávez, tem sido implementada uma política de diversificação de fontes de abastecimento, antes muito concentrado nos EUA e na Colômbia, o que era visto como fator de vulnerabilidade. Cabe lembrar que a Venezuela especializou sua economia na produção de petróleo e depende de importações: seus fornecedores assumem uma capacidade política de afetar o abastecimento nacional do país. A Venezuela, ao elevar suas compras do Brasil, vê o nosso país como um parceiro confiável.  Está um curso uma mudança estratégica do eixo das relações econômicas da Venezuela: do norte (EUA) para o Sul (Brasil e MERCOSUL). É preciso que, estrategicamente, saibamos aproveitar esse momento raro.
A adesão da Venezuela é também uma grande oportunidade diante da conjuntura de grave crise mundial. A inevitável redução dos fluxos mundiais de comércio e de investimentos que a crise já vem acarretando, demanda medidas fortes de estímulo ao comércio regional e aos investimentos intrabloco. Por isso, o Parlamento do MERCOSUL aprovou recomendação ao Conselho do Mercado Comum, na qual se coloca ênfase na necessidade de promover os fluxos comerciais e de investimentos regionais e de ampliar e consolidar do processo de integração.
A entrada da Venezuela no MERCOSUL deverá aumentar substancialmente os números do relacionamento comercial crucial para o Brasil. O potencial econômico-comercial da relação apenas começou a ser explorado. Face à complementaridade das duas economias, não há dúvida de que, no longo prazo, independentemente da evolução da crise mundial, a Venezuela deverá se converter, caso ingresse no MERCOSUL, num dos primeiros parceiros econômicos e comerciais do Brasil. Hoje, ela já está em 6ª posição, à frente de países ricos como a Itália e o Reino Unido.
Além dos interesses brasileiros é necessário levar em consideração também, nesta análise, os interesses do próprio MERCOSUL.
O alargamento do MERCOSUL abre a oportunidade de compensar as dificuldades encontradas no aprofundamento do bloco. A política de alargamento, iniciada já na década de 1990, revitalizaria rapidamente o bloco com a ampliação dos mercados. No caso da Venezuela, esse impulso seria notável, diante de seu peso econômico (3º PIB da América do Sul) e sua população (28 milhões, com PIB/capita de US$ 13.000 em termos de paridade de poder de compra, superior em 30% ao do Brasil). A economia petroleira prejudicou o desenvolvimento agrícola e industrial, transformando a Venezuela em grande importador de alimentos e bens industriais: importa 75% do que consome e é mercado cobiçado pelos grandes países exportadores (EUA, União Europeia, China, etc.).
Ademais, o MERCOSUL tem o desafio de tornar-se o bloco comercial de referência da América do Sul. O que está em jogo na América do Sul, como esteve na Europa, é a concorrência de outros modelos de economia política: o modelo do MERCOSUL é desafiado por propostas como o NAFTA – ao qual aderiu o México – ou os Tratados de Livre Comércio (TLC) bilaterais – como celebrado entre a Colômbia e os EUA. Esses acordos, caso venham a reproduzir-se e, em particular, envolver países membros do MERCOSUL, colocam nosso bloco em posição inconveniente.
Nesse sentido, ao desligar-se da Comunidade Andina, diante da incompatibilidade criada pelos tratados de livre comércio celebrados unilateralmente por membros desse bloco, a Venezuela abriu uma oportunidade histórica para a ampliação do MERCOSUL, antes restrito ao Sul da América do Sul. A medida pode ser criticada da ótica da CAN, mas é uma oportunidade da ótica do MERCOSUL. Se o MERCOSUL não avançar, os TLC ou novas propostas avançarão. É preciso que o MERCOSUL ocupe rapidamente seu espaço – e este espaço passa pela Venezuela.  O MERCOSUL não pode perder oportunidades de alargar-se diante dos modelos de integração alternativos promovidos por outras potências: existe uma concorrência lá fora e é preciso agir rápido.
Na América do Sul, está claro que não haverá integração energética sem que a Venezuela seja parte. A Venezuela tem a 6a maior reserva de petróleo certificada do mundo: 80 bilhões de barris. Há estimativas de cerca de 236 bilhões de barris adicionais na região do Orinoco, tornando-a a 1ª reserva mundial. As reservas de gás são de 151 trilhões de pés cúbicos (9ª. maior reserva), tendo havido descobertas recentes que a tornariam a 5ª reserva mundial.
III- A Questão Democrática
Alguns enfatizam que a situação interna na Venezuela – em termos de democracia e direitos humanos – não é compatível com sua adesão ao MERCOSUL. Partem da premissa de que só poderiam entrar no MERCOSUL países que cumprem plenamente os requisitos da democracia e dos direitos humanos. Essa avaliação está equivocada porque pressupõe que o MERCOSUL é um clube de países-modelo em termos de democracia e direitos humanos. Ele é, na verdade, um quadro institucional destinado precisamente a fortalecer a democracia e os direitos humanos. São os países mais débeis nesses quesitos que mais precisam do MERCOSUL. 
Na União Europeia, aprenderam a conviver harmoniosamente, não obstante dificuldades iniciais, regimes tão distintos como monarquias, repúblicas, sistemas presidencialistas e parlamentaristas; com longa tradição democrática, como o Reino Unido, ou com forte tradição autoritária, como Portugal e Espanha; com modelos econômicos liberais, com o Reino Unido, dirigistas, como a França, ou socialistas, como a Suécia. Integração não significa eliminação da diversidade e do pluralismo.  Significa trabalhar juntos para alcançar objetivos comuns. No cenário internacional, nos Estados não escolhem seus parceiros por afinidades, mas por interesses. Os Estados apresentam assimetrias não apenas econômicas, mas também políticas – que são um dato inescapável da realidade.  Se fôssemos invocar as diferenças políticas como critério, mal teríamos relações internacionais.
A democracia é certamente um objetivo comum do MERCOSUL. O Brasil, que lutou para conquistá-la em 1985, deve refleti-lo em sua atuação internacional. No entanto, o conceito de democracia é impreciso – todos sempre podemos melhorar. Antes de ser eleito Presidente, Fernando Henrique Cardoso examinou, em obra ilustre, o que chamou de “construção da democracia” no Brasil. O tempo histórico de cada nação é próprio – e não há como acelerar esse processo, contínuo, de construção democrática.
Não se pode comparar a situação democrática de um país com a de outro – por exemplo, querer comparar a Venezuela ou o Brasil com a França ou o Reino Unido. A exportação forçada da democracia promovida pelo Governo do Presidente George W. Bush a partir de 2005 apenas contribuiu para gerar mais instabilidade no Oriente Médio. O que, sim, é possível avaliar é o sentido – positivo ou negativo – tomado por um país em comparação com seus próprios antecedentes históricos. Assim, podemos comparar o Brasil de hoje com o Brasil de há cinquenta anos; ou a Venezuela de hoje com a Venezuela de há algumas décadas.
Não se pode avaliar a democracia na Venezuela sem uma visão histórica. Cabe observar que durante a Guerra Fria, a Venezuela foi apresentada como um exemplo raro de democracia na América do Sul. Trata-se, como vimos, de uma falácia. O país vivia sob o regime do Pacto de Punto Fijo, articulado pelos EUA em 1957, pelo qual os partidos tradicionais e conservadores aceitaram alternar-se no poder, sem permitir a entrada de novos partidos. O objetivo, para os EUA, era garantir alguma estabilidade na Venezuela, diante de sua importância como fornecedora de petróleo.
Os historiadores comparam o Pacto de Punto Fijo à Política do “café-com-leite” da República Velha brasileira: por trás de uma fachada de democracia, escondeu-se um sistema oligárquico.  Avalia-se que cerca de 50% da população terá sido excluída do exercício do voto desde os anos 60. O sistema eleitoral era excludente, diante de artimanhas diversas (o voto era obrigatório, mas o registro eleitoral era facultativo e, na prática, muito dificuldade à população de baixa renda; os cartórios eleitorais se concentravam nas zonas prósperas do país e não eram facilmente alcançados pelos mais pobres; as zonas eleitorais eram remanejadas segundo cálculos eleitorais do governo de turno). O federalismo venezuelano foi profundamente autoritário, cabendo ao Presidente da República nomear todos os governadores e prefeitos biônicos, muitos dos quais hoje militam na oposição venezuelana. Apenas em 1989 foram realizadas as primeiras eleições para prefeitos e governadores. Eram comuns as prisões de jornalistas, em razão da publicação de matérias que denunciavam questões como o tráfico de armas para as FARC ou emprego das forças armadas para fins privados (como ocorreu, entre centenas de outros casos, com o professor Pablo Antillano, em 1968, atual professor da Universidade Central da Venezuela).  Hoje, não existem jornalistas presos na Venezuela.
Isso explica porque a Venezuela chegou ao fim do século XX com uma contradição evidente: apesar das grandes riquezas derivadas da exportação de petróleo, 70% de sua população viviam abaixo da linha de pobreza. Em 1989, no contexto da crise econômica, manifestações populares se multiplicaram por todo o país. Uma delas, o “Caracazo”, foi duramente reprimida pelo Estado, cujas forças mataram indiscriminadamente entre 1000 e 3000 pessoas. As manifestações estudantis foram também reprimidas, tendo sido ordenado o fechamento da Universidade Central da Venezuela, que durou três anos. A eleição de Hugo Chávez em 1998 se insere no colapso do Pacto de Punto Fijo: para uma população desprovida de sistemas públicos includentes (saúde, educação, moradia, etc.), a plataforma política de Chávez surgiu como proposta sem precedentes na história do país, o que explica, em grande parte, a sua popularidade nas camadas historicamente excluídas do povo venezuelano.
É, portanto, equivocado o argumento de que, antes da eleição de Chávez, a Venezuela vivia uma democracia plena e que, hoje, ela estaria sendo “destruída”. Essa versão não encontra base na história da Venezuela e não pode servir como subsídio para orientar a análise do Estado brasileiro a respeito da adesão da Venezuela ao MERCOSUL.  Importa observar que a propensão histórica de setores venezuelanos a utilizar meios de força não está restrita ao século XIX: em 2002, a oposição venezuelana organizou um golpe de Estado que derrubou o Presidente Chávez por dois dias. A ação durou poucos dias, porque houve um levante popular que obrigou os militares a restaurarem o Presidente legitimamente eleito. Na época, o Governo brasileiro, presidido por Fernando Henrique Cardoso, condenou o golpe de Estado e exigiu o retorno incondicional de Hugo Chávez à Presidência. Frise-se que, no dia do golpe, Chávez telefonou para apenas dois presidentes: Fidel Castro e Fernando Henrique Cardoso.
Não há dúvida sobre a legitimidade do Presidente Chávez. Ele disputou doze eleições desde 1998. Ganhou 11 e perdeu 1 (referendum de reforma constitucional, em 2007). Em 1998, obteve 56% dos votos (3,7 milhões). Em 2006, 63% (7,3 milhões de votos). Em 2009, 54,85% dos eleitores aprovaram emenda constitucional que autoriza a reeleição. Chávez deverá ser candidato para o mandato 2013-2019. O sistema eleitoral, em 2009, foi completamente informatizado e contém salvaguardas antifraude adicionais às que existem no Brasil. Todas as eleições foram consideradas livres e legítimas pelos observadores internacionais (Centro Carter, ONU e OEA, Governos estrangeiros), inclusive brasileiros. É notoriamente elevado o grau de consciência política entre a população hoje.
Isso não significa que não haja desenvolvimentos na política interna da Venezuela – ainda marcada pela polarização política e pela tensão – que não possam suscitar preocupações no exterior, inclusive no que tange aos limites à alternância de poder, suscitados pela possibilidade de muitas reeleições consecutivas. Sem prejuízo dos cuidados que o Brasil deve ter em respeito à soberania venezuelana e à não-interferência nos assuntos internos, é legítimo que possamos acompanhar os desenvolvimentos em outros países, como a Venezuela.
Para conciliar esse interesse com o princípio da não-ingerência, o Itamaraty elaborou, durante a crise de 2002-2003, que quase levou a um enfrentamento entre governos e oposição na Venezuela, a doutrina da “não-interferência, porém sem indiferença”. Isso significa que devemos estar dispostos a dialogar com ambos os lados, para facilitar o entendimento e as soluções pacíficas. Significa que não podemos simplesmente colocarmo-nos como juízes do processo interno venezuelano, emitindo críticas à distância, e isolando a Venezuela, fora do MERCOSUL. Pressupõe, sobretudo, que tenhamos credenciais para sermos vistos como ator com uma contribuição positiva para a solução de crises internas.
Há questões que justificam a “não-indiferença” do Brasil na Venezuela. O golpe de 2002 introduziu um sentido de desconfiança sobre os métodos a que poderia recorrer os opositores a Chávez. As forças armadas mostraram que poderiam ser divididas e utilizadas politicamente. Foram intensificados os financiamentos internacionais direcionados para a oposição, embora isso seja proibido por Lei na Venezuela, tal como o é no Brasil.
Observe-se que o golpe de Estado de 2002 foi apenas uma primeira tentativa da oposição venezuelana de desestabilizar o Governo Chávez.  No final de 2002, início de 2003, a PDVSA foi paralisada por iniciativa de diretores nomeados durante o Governo anterior.  Como é fonte de 70% das receitas do Estado, a PDVSA é fortemente disputada pelos setores políticos. Não obstante ter sido eleito em 1998, Chávez não logrou fazer cumprir suas diretrizes dentro da empresa, em razão da inexistência de uma burocracia profissional na PDVSA e da politização de seus quadros, até proceder a uma ampla reforma de sua estrutura de recursos humanos. Isso ocorreu apenas depois da traumática experiência da “greve petroleira” de 2002/2003. Cabe lembrar que, na época, o Presidente Fernando Henrique Cardoso buscou apoiar o Presidente Chávez e enviou um carregamento emergencial de gasolina brasileira, iniciativa considerada decisiva para a sobrevivência do governo venezuelano à greve interna. 
É no contexto da politização de diversas instituições do Estado que devemos compreender o esforço do Governo Chávez para a renovação dos quadros, como iniciado na PDVSA e realizado também na esfera do Judiciário e das autoridades eleitorais. Pode-se dizer que a Venezuela vive hoje um momento de transição, em que se busca desmontar o controle político das instituições do Estado por parte de setores políticos opositores, processo que desperta preocupações. É certo que o risco dessa transição é que o controle político apenas mude de mãos, sem que se criem estruturas públicas caracterizadas pela imparcialidade e pela impessoalidade. Esse objetivo, contudo, somente pode ser alcançado por meio de um apoio firme, inclusive internacional, ao aperfeiçoamento da administração pública – e não com simples denúncias de seu controle pelo Estado ou outros setores.
Não há uma “quase ditadura” na Venezuela. A verdade é que são muito atuantes na Venezuela os partidos contrários ao Governo, como o COPEI e a Ação Democrática, de histórico enraizamento na sociedade venezuelana. Nos últimos anos, houve crescimento significativo da oposição – como na derrota, em dezembro de 2007, do referendo relativo à reforma da Constituição da Venezuela.  Isso provou que as eleições não são fraudulentas e que a oposição tem condições de ganhar. Nas eleições provinciais de novembro de 2008, embora o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), chavista, tenha obtido a maior parte dos votos no cômputo geral, a oposição conseguiu importantes vitórias nos estados mais populosos e economicamente dinâmicos (Carabobo, Táchira, Nueva Esparta e Miranda), bem como na capital, Caracas, e na cidade de Maracaibo.
Observe-se, além disso, que em todos os pleitos eleitorais realizados ao longo do governo Chávez, acompanhados por inúmeros observadores internacionais, não houve denúncias comprovadas de fraudes e vícios que tivessem comprometido os resultados, o que poderia ter afetado, de fato, a ordem democrática venezuelana. Conforme observou o ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter, que conduziu observadores no referendo revocatório de 2004, existe uma tendência da oposição venezuelana a exagerar os fatos e negar as credenciais democráticas do regime:
Visitamos o Conselho Nacional Eleitoral, que respondeu a todas as nossas perguntas. Ficamos satisfeitos. Nossa próxima reunião foi com líderes da oposição, onde ouvimos uma sucessão de previsões catastróficas, sobre fraudes, intimidação e violência planejada pelo Governo. (…) Ainda que o país estivesse em paz, alguns líderes da oposição diziam-se angustiados, sentimento também dado pelos jornais com manchetes como “Catástrofe," "Fraude Permanente" e "Sérias Dúvidas." (...) Oferecemos aos sempre irados líderes da oposição nossos serviços para esclarecer as dúvidas que tinham, antes de partir (...)A questão da liberdade de imprensa precisa ser analisada de forma aprofundada. Segundo o ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter: “há claramente liberdade de expressão, de associação e de imprensa”. A Venezuela tem uma imprensa bastante atuante que faz oposição ferrenha ao governo Chávez, o que assegura a divulgação livre de informações própria dos regimes democráticos.
O problema está na guerra midiática entre Governo e oposição. Ao longo dos anos 90, o sistema partidário venezuelano colapsou, tendo havido uma migração da política para os sistemas de rádio e televisão. Os canais se transformaram em braços dos partidos políticos. Ninguém no Brasil poderia pretender comprar um canal de televisão e fazer horário contínuo de propaganda política, invocando seu direito de liberdade de imprensa. Temos, no Brasil, regras estritas sobre a propaganda política, que não existem na Venezuela.  Canais como a Globovisión concentram sua programação em entrevistas, declarações e análises de políticos de oposição – uma espécie de horário eleitoral contínuo, que não contribui para um debate realmente democrático e ponderado sobre as questões venezuelanas. Em reação, os canais do Governo buscam, no outro extremo, defender os programas governamentais. Essa polarização alcançou momentos paroxísticos de crise – como durante o golpe de Estado de 2002, em que a RCTV transmitiu imagens de desenho animado para prevenir a mobilização popular; ou em 2008, quando a Globovisión transmitiu entrevista em que editor de jornal previa (e apoiava) que o Presidente Chávez “acabaria morto como Mussolini, pendurado pelos pés, de cabeça para baixo”. 
O Brasil pode contribuir para apaziguar os ânimos inflamados da oposição e do Governo na Venezuela. Não podemos, contudo, pretender emitir um julgamento, que não nos cabe. A democracia e as liberdades políticas na Venezuela são um processo em construção. Uma posição puramente crítica apenas contribuiria para que o Brasil perdesse sua hoje valiosa capacidade de influir. Ademais, estaríamos reproduzindo um comportamento que, ao longo de nossa história, sempre rechaçamos energicamente quando aplicado por potências externas ao Brasil. O Congresso brasileiro já se manifestou no passado em repúdio a opiniões externas relativas a questões internas do nosso país – como em matéria de direitos humanos e de processos eleitorais.
Alguns citam violações de direitos humanos na Venezuela referindo-se a relatórios de alguns organismos internacionais. Até mesmo absurdas acusações de antissemitismo foram suscitadas, as quais se revelaram exageradas, conforme as análises internas do Governo brasileiro. Sem desqualificar o importante trabalho das organizações internacionais, é preciso reconhecer que suas avaliações nem sempre são neutras, porque são formuladas com base nas políticas de seus membros, notadamente os mais poderosos.
Não podemos assumir, como sendo uma descrição perfeita da realidade, relatórios de direitos humanos passíveis de motivações políticas. O Brasil defendeu, em Genebra, a despolitização dos trabalhos em matéria de direitos humanos. A abordagem brasileira para a questão dos direitos humanos é pró-ativa: não somos juízes, porque não queremos ser julgados por outros países; somos solidários com as dificuldades de outros, que queremos ajudar a solucionar, da mesma forma como queremos ser ajudados a solucionar as nossas dificuldades. Novamente, os direitos humanos são algo a ser construído à luz do tempo histórico de cada país. Nesse contexto, relatórios críticos sobre direitos humanos, desde que isentos, são muito bem-vindos, pois ajudam países e governos a corrigir as sempre presentes imperfeições na plena implantação dos direitos humanos.
É preciso considerar que o próprio Brasil não pode ser encarado como um modelo, no que tange ao respeito aos direitos humanos.     Infelizmente, ainda há no País tortura contra presos comuns, trabalho em condições de escravidão, discriminação de gênero e raça, falta de acesso universal à educação e à saúde, e vários outros fatores que afetam o desfrute dos direitos humanos. Na realidade, são muito poucos os países do mundo que podem ser considerados exemplares em termos de democracia e direitos humanos. Mesmo países desenvolvidos, com os EUA, por exemplo, podem ser questionados, nesse aspecto. Assim, se adotarmos uma postura muito rígida nesse campo, como pré-requisito para estabelecermos relações mais estreitas com outros países, ficaríamos bastante isolados. Obviamente, o limite deve ser dado, no caso do MERCOSUL, pelo Protocolo de Ushuaia, que prevê eventuais sanções contra membros do bloco, apenas no caso estrito de ruptura da ordem democrática, o que, como o próprio Relator da matéria reconhece, não aconteceu na Venezuela.
O importante é assegurar que haja uma evolução positiva da paciente e sempre inacabada construção das democracias e dos arcabouços institucionais e jurídicos relativos aos direitos humanos. Nesse sentido, deve-se observar que tal evolução é robustecida e acelerada pelos processos de integração, como a experiência europeia demonstra, ao passo que o isolamento normalmente resulta em retrocesso.
Assim, se existe preocupação com a evolução democrática ou dos direitos humanos na Venezuela, a forma para equacioná-la é inseri-la nos mecanismos de defesa da democracia existentes no MERCOSUL – ao invés de isolá-la. É interessante notar que, depois de defender que a Venezuela não fosse admitida ao MERCOSUL, em carta dirigida ao Presidente do Senado José Sarney, o principal líder da oposição venezuelana, Antonio Ledezma, Prefeito Maior de Caracas, mudou de posição. Em entrevista ao Estado de S. Paulo (7.10.2009), deixou clara essa sua posição:  Digo isso muito sinceramente: é preciso que o Brasil e os demais países-membros aceitem a Venezuela no MERCOSUL. E isso por uma razão que me parece lógica: Chávez é muito mais perigoso isolado. Para nós, a oposição, é importante que Chávez esteja na Comunidade Andina, na OEA, no MERCOSUL e em tantos outros fóruns internacionais que possam pôr limites às suas ações. Essa seria uma medida muito positiva para a democracia venezuelana.
Vale lembrar que, entre os compromissos já assumidos, a Venezuela aderiu ao Protocolo de Ushuaia em 2005, na condição de Estado Associado ao MERCOSUL, tendo-o ratificado em fevereiro de 2007. O Protocolo está em vigor, servindo de marco promotor da democracia venezuelana.  Assim, caso sua adesão ao MERCOSUL seja rejeitada, a Venezuela poderá considerar-se fora do Protocolo de Ushuaia. Isso excluiria o MERCOSUL como marco para a defesa da democracia na Venezuela. Em vez de ajudar, o Brasil estaria prejudicando a democracia na Venezuela. A melhor defesa da democracia na Venezuela é sua manutenção no Protocolo de Ushuaia, o que requer sua admissão plena ao MERCOSUL.
Os recentes acontecimentos no Paraguai demonstram o quanto é importante a cláusula democrática. Neste caso, houve, de fato, clara interrupção da ordem democrática. No fosse o Paraguai um membro do Mercosul, o bloco não poderia ter feito nada para denunciar o fato e suspender provisoriamente aquele país de seus direitos, no âmbito do Mercado Comum do Sul. Caso algo semelhante venha a acontecer na Venezuela, o Brasil e os demais Estados Partes poderão tomar a mesma atitude, ou ainda sanções mais fortes.
O texto acima é uma condensação de pareceres elaborados ou ajudamos a elaborar  para o deputado federal Doutor Rosinha (PT-PR) e o senador Romero Jucá (PMDB-AP)

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