segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Argentina x Brasil: quanto se lê em cada país

Leitura engajada

Por Marina Mota em 10/09/2012 na edição 711
Reproduzido do Valor Econômico, 6/9/2012; intertítulos do OI
Logo na entrada da livraria El Ateneo – a mais famosa e visitada de Buenos Aires –, uma das estantes de produtos à venda revela duas paixões dos argentinos: os livros e a política. O resultado dessa combinação é visível também nos números do mercado editorial: cerca de 25% das publicações argentinas estão relacionadas à política, segundo Jorge Testero, presidente da Comissão do Livro Social e Político da Câmara Argentina do Livro. Em 2010 foram publicados 26,3 mil títulos, sendo 22,7 mil novas obras, de acordo com dados da entidade. As vendas chegaram a quase 76 milhões de exemplares e os livros classificados como políticos e sociais representaram mais de 20% do montante. No Brasil, mercado quatro vezes e meio maior que o argentino, foram publicados 54,7 mil títulos em 2010, mas os lançamentos na categoria de títulos políticos e sociais não chegaram a 19 mil, de acordo com uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo.
Os números argentinos de 2011 ainda não estão disponíveis, mas Testero adianta que houve crescimento. Curiosamente, os livros políticos não são baratos, custam em média entre US$ 25 e US$ 30. “Do ponto de vista comercial, é uma das áreas editoriais mais dinâmicas, com muitos lançamentos, promoções e uso desses títulos pelas livrarias para atrair clientes”, diz. “No próximo ano, certamente vão ser lançados numerosos livros por causa das eleições parlamentares, repetindo o que aconteceu em 2011, também de eleições”, afirma Daniel Molina, crítico literário e coordenador da área de letras do Centro Cultural Ricardo Rojas da Universidade de Buenos Aires. Como no geral são livros feitos de forma muito rápida, Molina questiona a qualidade. “Há investigações sérias, mas também obras ruins, com muitos erros.”
Jornalismo literário
Historicamente, o debate político tem sido muito popular no país. “A decisão de compra é uma forma de marcar posição. Os partidos estão enfraquecidos, então a classe média encontra nos livros um substituto psicológico”, diz Molina. O fenômeno, para ele, tem a ver também com uma forte tradição de leitura. “Isso só faz sentido porque as pessoas leem muito. Desde a independência o debate se dá dessa forma”, acrescenta Molina.
O próprio nascimento da literatura argentina está relacionado com o tema. Em 1838, foi escrito o conto El Matadero, de Esteban Echeverría, que denunciava a ditadura de Juan Manuel de Rosas. Sete anos depois, Domingos Sarmiento, futuramente presidente da República, publicou o romance Facundo, em que resgata a história de Facundo Quiroga, um caudilho da província de La Rioja.
Outro marco é a obra Operación Masacre, de Rodolfo Walsh. Lançado em 1957, o livro narra o fuzilamento de civis pelo governo do general Aramburu, dando os primeiros passos num estilo que acabaria conhecido alguns anos depois como jornalismo literário, quando Truman Capote publicou A Sangue Frio nos Estados Unidos. Depois de uma entressafra de duas décadas a partir dos anos 1970 – período marcado por umas das ditaduras mais violentas da América Latina –, a tendência voltou forte no início dos anos 1990.
Novo projeto
A nova onda foi inaugurada pelos livros Robo para la Corona, de Horacio Verbitsky, e Por Qué Cayó Alfonsín, el Nuevo Terrorismo Económico, de Luis Majul, dois recordistas de vendas. Ambos os autores são jornalistas muito conhecidos no país. No ano passado, Majul lançou outro fenômeno editorial, Él y Ella – primeiro no ranking de não ficção de 2011 –, com denúncias de corrupção envolvendo Néstor e Cristina Kirchner no momento em que a presidente disputava a reeleição.
Quando ainda era uma jornalista em início de carreira, Laura Di Marco se surpreendeu ao ouvir do veterano Majul que comprou um apartamento com as vendas do primeiro livro. Hoje, ela é a autora do livro político de maior êxito em 2012. La Campora vendeu 60 mil exemplares em seis meses. A primeira edição de sete mil exemplares se esgotou em dois dias. A obra conta a história de uma corrente de apoio ao governo gestada por Néstor Kirchner. La Campora, cujo nome faz menção ao presidente argentino que ocupou o cargo em 1973 para em seguida repassá-lo a Juan Domingo Perón, é formada por jovens que atualmente ocupam cerca de 2 mil postos na máquina estatal. “Esse é um livro com a foto em movimento, escrevi à medida que os atos iam acontecendo, tive que fazer muito rápido”, conta. A pesquisa e redação do livro durou um ano.
“Comecei a escrever com uma visão curiosa, depois fui me tornando mais crítica”, afirma Laura. A jornalista deparou com um desafio permanente da atividade na Argentina: é extremamente difícil checar uma informação. Assim como a maior parte dos integrantes do governo, os membros da tendência também não falam com jornalistas que não sejam kirchneristas. Laura adianta que já começou a desenvolver um novo projeto sobre aspectos desconhecidos da história de Cristina.
Política em destaque
Embora os livros críticos tenham público maior, há espaço farto para o governismo. A biografia autorizada de Cristina Kirchner, La Presidenta, de Sandra Russo, também liderou as listas de mais vendidos no ano passado. Neste ano, um dos destaques kirchneristas é obra de encomenda Eva y Cristina, de Araceli Bellotta, comparando a vida da atual mandatária com a de Evita Perón. Araceli conta que o livro demorou nove meses para ficar pronto. A pesquisa sobre Evita ela já tinha de outros livros que escreveu e o trabalho foi centrado principalmente na parte sobre Cristina, também com várias citações de outras publicações. “Eu sou peronista e feminista”, faz questão de deixar claro. “Acho importante se identificar porque muitos dizem que são independentes e não são.”
Uma frase do político argentino Antonio Cafiero muito famosa entre os hermanos afirma que “o peronismo dá para tudo”. Não podia ser diferente na produção literária. Tanto que desta quinta ao sábado (de 6 a 8/9) o Museu Evita em Buenos Aires está sediando a quarta edição da Feira do Livro de Temática Peronista, com debates, lançamentos e presença de 37 editoras, tanto de grandes grupos como de universidades e algumas especializadas em peronismo. As doações das editoras que participam da feira à Biblioteca do Museu dão uma medida da quantidade de publicações. Só no ano passado, foram cerca de 300 títulos. Segundo Laura Macek, uma das organizadoras, nem todos os autores são peronistas. “Há intelectuais contrários também. Demorou muito para que eles quisessem participar, mas entenderam que é um espaço de discussão”, comenta.
Na última Feira do Livro de Buenos Aires, em abril, a política ocupou lugar de destaque, com presença de autoridades no debates, jornalistas e diversos lançamentos. Na capital, há um Museu da Língua e do Livro com uma seção dedicada às obras políticas. É comum encontrar na Argentina bibliotecas com obras importantes em casas de classe média. Para se ter uma ideia, entre os anos 1920 e 1970, metade dos livros em espanhol no mundo era vendida só na cidade de Buenos Aires.
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