domingo, 14 de julho de 2013

A imortalidade das utopias - a revolta camponesa de 1381

Sebastião Nunes


Nada é impossível com vontade e cultura, pena que não temos cultura nem vontade
Nada é impossível com vontade e cultura, pena que não temos cultura nem vontade
PUBLICADO EM 14/07/13 - 03h00
Ao começar sua “Editor’s letter”, na “Vanity Fair” de fevereiro de 2013, o editor Graydon Carter escreveu: “Not to generalize, but mankind can be divided into three groups”. Aproveito o mote: não vou generalizar, mas a humanidade se divide em dois grupos: os que lutam pela diminuição das diferenças sociais e os que lutam pela manutenção (ou pela ampliação) das diferenças sociais.


Temos assim dois grupos. De um lado, os que lutam pela redução de privilégios, chamados socialistas, progressistas ou esquerdistas. Do outro, aqueles que se empenham em manter (ou aumentar) privilégios, e que podem ser rotulados de conservadores, reacionários ou direitistas, à escolha. Não há como fugir dessa dicotomia, que surgiu no século XIV: cada um de nós está numa das categorias acima. Neutralidade não existe.
Metidos nessa briga temos, no Brasil, 10 mil famílias com grandes fortunas, metade delas controlando cerca de 40% do PIB nacional e, no buraco, 16 milhões de miseráveis (vivendo com até R$70,00 mensais). Se não for exatamente assim, é quase assim, o suficiente para desesperar um anjo barroco.
COMEÇANDO PELO FIM

John Ball, um padre inglês, também conhecido como “o padre doido do Kent”, era poeta. Um dos três líderes da revolta, foi enforcado e esquartejado em 15 de julho de 1381, na presença ilustre de Ricardo II, rei da Inglaterra, que deve ter lambido os beiços de gozo.
Wat Tyler, outro dos líderes, foi apunhalado pelo xerife de Londres, durante a segunda reunião de negociações dos revoltosos com o rei, porque o xerife imaginou que o monarca pudesse ser atacado. Na dúvida, melhor prevenir do que remediar.
De Jack Straw, o terceiro líder, nada se sabe, exceto que liderou, lutou e perdeu.
MOTIVOS
Tudo começou por causa de um imposto chamado “poll tax”: cada família deveria contribuir com um xelim por adulto para financiar as guerras no continente. Pouca coisa, não é mesmo? Lembra até o que aconteceu por aqui recentemente.
Foi então que John Ball pregou um sermão em que perguntava: “Nos tempos de Adão e Eva, quem era o grande senhor?”, numa referência direta ao rei. Por incrível que pareça, essa pergunta tão simples atravessou a Idade Média, aprofundando a divisão entre senhores e servos e tornando-se motivo para incontáveis rebeliões.

MINORIAS ATIVAS

Na época, como na Idade Média em geral, camponês não podia sair da propriedade em que trabalhava. Como a mortandade pela Peste Negra tivesse sido enorme, o trabalho, ainda que servil, passou a ser valorizado, mas tudo continuava na mesma nas propriedades senhoriais. Assim, o novo imposto foi a gota d’água e deu no que deu, com os camponeses rebelados marchando sobre Londres.
Situação inusitada para o tempo, provocou tremendo alvoroço entre os senhores, apesar de poucas propriedades terem sido atacadas. A servidão era tão antiga e persistente que ninguém tinha coragem de confrontar um nobre, muito menos exigir alguma coisa, ainda que sua família estivesse morrendo de fome.
Mesmo nessa situação, porém desesperados e dispostos a tudo, os grupos rebelados se encontraram com o próprio rei e apresentaram-lhe exigências, sobre princípios básicos que regiam o feudalismo. Em sequência, tomaram a Torre de Londres e executaram vários figurões que ali se refugiavam, como o Lorde Chanceler, o arcebispo Simon Sudbury, um dos responsáveis pela instituição da “poll tax”, e o Lorde Tesoureiro (ministro das finanças). Quando destruíram um palácio do tio do rei, Ricardo II percebeu que a coisa era séria e decidiu por reformas, entre as quais pagamento mais justo e abolição da servidão.
Estava lançada a semente que levaria à modernidade, embora ainda fosse preciso esperar séculos para reformas realmente eficazes.
FRONTEIRAS URBANAS

Uma das maneiras que os ricos encontraram para se defender da proximidade dos pobres foi o encarecimento das terras. Em comunidades pequenas, ricos (quando existem) e miseráveis moram próximos, dividindo as mesmas ruas, escolas, igrejas e lojas. Esbarram uns nos outros todo o tempo.
Nas cidades grandes – quanto maior a cidade, pior a situação – os bairros são divididos claramente pelo poder. Vivendo o dia a dia do tumulto e da correria, poucos se dão conta dessa separação absurda entre renda e qualidade de vida.
Apenas no centro da cidade grande existe o que se pode chamar de democracia, mesmo sendo pouco frequentado pelos ricos. Nas áreas residenciais nobres, pobre só entra como empregado doméstico, entregador, motorista ou jardineiro. O mesmo ocorre nas escolas dessas regiões. Pobre, só na cantina ou na faxina.
MAIS UMA, MENOS UMA

No ano de 1381, perto da virada do século, as populações rurais viviam praticamente como viveram seus antepassados nos mil anos anteriores, desde a queda do Império Romano, e provavelmente pior do que viveram em Roma, como escravos.
Essas condições se estenderam até depois da Revolução Industrial, na Inglaterra, que atraiu para as cidades multidões de camponeses, aviltando os salários e os tornando ainda mais miseráveis. Os retirantes nordestinos do século XX exemplificam mais ou menos o que foi essa debandada dos campos para as cidades industrializadas.
No entanto, a roda das exigências gira. Devagar, muito devagar, aumenta a percepção do que existe de errado e do que deve ser feito. A tendência maior, no entanto, é no sentido de que a propriedade se defenda com unhas e dentes.
Por falar nisso, está em pauta novamente o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas), tema do início desta crônica. Ao lado da extinção total do Senado e da reforma política profunda (com plebiscito já), formaria um belo tripé, sobre o qual o país poderia, enfim, caminhar pelas próprias pernas.

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