sábado, 3 de agosto de 2013

O engodo da austeridade




Para o cientista político Mark Blyth, a contenção de gastos públicos é um modo de a elite ludibriar o povo
por Eduardo Graça — publicado 01/08/2013 08:50

Professor de ciência política na Brown University, Mark Blyth viu o seu livro mais recente, Austerity – The history of a dangerous idea, ser elogiado por economistas de renome. Na perspectiva de Blyth, as políticas de austeridade são, em última análise, um engodo moralista: apoiam-se na falácia de os excessos consumistas anteriores à crise exigirem agora um ato de penitência supostamente purificador. “O pecado exige penitência”, ironiza.
CartaCapital: Em abril, o economista Dani Rodrik tuitou: “Acabei de ler Austerity. Não é que foi preciso um cientista político para expor a ilusão dos economistas?” Por que é tão difícil para os economistas do mainstream concordarem com a premissa do perigo da austeridade?
Mark Blyth: A austeridade é uma ideia igualmente sedutora, por três razões. A primeira é o senso comum. Se você tem uma vida grande, pare de gastar e ela se reduzirá. A segunda é o aspecto moralista, ao defender que o esbanjador pague pelos excessos. O pecado exige penitência. A última é o preconceito com a ideia de o Estado poder gastar. Quando o setor privado gasta, leem-se produção, investimento. Quando o estímulo se dá via setor público, a tradução é invariavelmente desperdício. A ideia de o Estado assumir o papel de investidor diante de uma iniciativa privada que gasta menos é simplificada pela mensagem de que se está automaticamente trocando dinheiro bom por ruim.
CC: Para o senhor, as três premissas estão erradas, não?
MB: Sim. E exatamente por isso fazem da austeridade uma ideia tão perigosa. Vamos começar pelo primeiro tópico: dívida pública não é em nada parecida com a privada. Os Blyth, por exemplo, não precisam importar gente, imigrantes, para o nosso núcleo familiar  e taxar seus descendentes por cinco gerações, enquanto criam papéis apostando contra seus futuros pagamentos de imposto, os quais, por sua vez, poderão ser vendidos em mercados secundários. Quando Estados dividem uma mesma moeda, como na Comunidade Europeia, e decidem pagar as dívidas ao mesmo tempo, acabam por reduzir a renda de todos os indivíduos. Com o colapso dos gastos e do consumo, a dívida aumenta em relação ao PIB. Por isso, os países que investiram mais nas medidas de austeridade fiscal, como Portugal e Espanha, se veem no paradoxo de ter uma dívida maior do que aquela de antes dos pacotes de arrocho fiscal.
CC: Na Europa há a ideia de que quem não fez o seu dever de casa precisa agora naturalmente pagar a conta do banquete.
MB: A austeridade como lição de moral ignora o fato de que é manifestamente impossível se endividar em excesso se não houver também empréstimo em excesso. A razão pelas quais o endividamento dos 34 países membros da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico ter explodido em 2008 foi o preço do resgate do setor financeiro global, dos bancos. Ou seja, de quem emprestava dinheiro, não de quem se endividava. Os bens e a renda daqueles que detinham a maioria dos bens e da renda nessas respectivas economias foram salvos enquanto os custos da operação eram passados ao restante da população, pagadora de impostos. A moral, neste caso, foi pervertida. A história de os países do Norte da Europa terem feito o dever de casa é mal contada. O que essas economias fizeram foi achatar os postos de emprego por uma década e exportar cada vez mais, com a reciclagem dos excedentes com os países do Sul transformados em crédito para se comprar mais bens produzidos no Norte.
CC: O senhor foi acusado de ser “neocomunista” ao afirmar que a austeridade seduz as elites por oferecer justificativa ideológica para o grosso da sociedade pagar pelos excessos dos mais ricos.
MB: Não há nada de comunista em se detectar o óbvio. O corte dos serviços públicos nada mais é do que a conta da debacle do setor financeiro passada para o restante da população. A dívida privada transformou-se em pública e a população paga até hoje pelos erros de quem emprestou sem poder fazê-lo. Quem poderia absorver a pancada foi protegido, enquanto quem não pôde pagar a própria conta passou a ter de arcar também com as despesas do setor financeiro. É uma operação clássica de fraude econômica: uma elite minúscula passou a perna no povo, algo como a clássica armadilha comercial, uma isca é oferecida e espera-se que o cliente não perceba a malandragem. Mas, agora, ela foi feita em larga escala, como jamais anteriormente. A lógica é a mesma em relação ao argumento de que mais dívida pública significa que os jovens pagarão pelos erros das gerações anteriores. Basta pensar que se aos jovens fosse oferecida a opção de se pagarem mais impostos no futuro como contrapartida para evitar a pobreza no presente (o custo imposto pela austeridade), a grande maioria toparia o toma  lá dá cá sem pestanejar. Se há algo de comunista nessa história, ele foi aplicado exclusivamente para os ricos. O grosso da população ficou com o capitalismo mesmo.
CC: E a ideia de o Estado ser um péssimo investidor?
MB: É igualmente falsa. E comprovada, tragicamente, pelos acontecimentos no Sul da Europa, com multiplicadores negativos agudos como cortes de 1 dólar de gasto público representando perda de 1,50 a 1,70 dólar de consumo final. Matematicamente, se há um negativo, é preciso haver um positivo, ou seja, o contrário é igualmente e exatamente verdadeiro. O setor público precisa, em tempos de crise, limitar o multiplicador negativo. Cortes públicos aumentam a dívida, gastos a diminuem, na medida em que não há colapso do crescimento econômico. O que é verdadeiro para um indivíduo não o é para a economia.
CC: No Brasil, alguns economistas anunciam o fim do modelo de crescimento baseado em estímulos públicos e programas sociais. E pregam a austeridade como solução.
MB: Estão terminantemente errados. A dívida brasileira é relativamente pequena em relação ao PIB e tem caído. O Bolsa Família, se pensarmos exclusivamente em termos de gastos públicos, é um sucesso. A questão legítima a se perguntar, e me parece estar no centro das exigências dos manifestantes, é por que políticos ditos de esquerda estão mais preocupados com a construção de hotéis e estádios para a Copa do Mundo e as Olimpíadas do que em investir na melhora dos serviços públicos? Serviços, aliás, bancados pelos altos impostos pagos. O Brasil deveria ter resolvido essas questões antes de embarcar em um furacão de gastos em construções a ser usadas a conta-gotas depois de 2016. Mas não há saída para o Brasil: para crescer mais o País precisa de um consumo doméstico ainda maior, mais do que em investir na exportação de matéria-prima. O melhor caminho agora é subsidiar o transporte e a educação para a população ter mais capital para o consumo. Do ponto de vista econômico, estão certíssimos aqueles que saem às ruas e exigem transporte público e educação mais baratos e de melhor qualidade. Os economistas que defendem a austeridade e a diminuição dos gastos públicos no Brasil estão errados.
CC: O Japão responde melhor à questão neste momento, com a política de estímulo ao crescimento proposta por Shinzo Abe?
MB: Após duas décadas de deflação e estagnação, o Japão finalmente tenta encontrar uma saída. Mas os japoneses têm um problema sério, desde os anos 1980, gerado pela migração das corporações nipônicas para a periferia da Ásia em busca de mão de obra barata. A trajetória do Japão é um exemplo clássico da falácia de que o que é racional e bom para as corporações seria também para os japoneses. Sem instituições de bem-estar social fortes, os japoneses saíram às compras, foram adquirir imóveis para se assegurarem, e a bolha do fim dos anos 1980 derrubou a maior parte do setor financeiro local. Depois de 20 anos, a população resiste a tirar a mão do bolso e tem horror à imigração, o que complica a proposta do primeiro-ministro Abe. Há ainda o aparecimento, nos últimos meses, de políticas econômicas muito mais afáveis defendidas por bancos centrais em todo o globo. E no encontro recente do G-8, um esforço para a criação de impostos corporativos globais, além da impossibilidade de o mundo todo entrar em uma espiral de desvalorizações. Tudo isso mostra que a história da próxima década deverá ser de impostos mais altos e mais inflação para se reduzir a dívida.
CC: A declaração de Ben Bernanke, de que o Federal Reserve gradualmente modificará sua política monetária, complicou a vida dos emergentes. O que esperar dos novos ventos do Fed?
MB: Se a política de flexibilização quantitativa, de compra de ativos no mercado, tinha como objetivo manter os ativos sobrevalorizados na esperança de os fundamentos da economia se adaptarem à nova realidade, ela funcionou apenas parcialmente. A maioria dos ganhos foi observada, como de praxe, no topo da distribuição de renda (quem tinha ações, por exemplo). As economias, especialmente as europeias, seguiram com a miragem das políticas autoderrotistas de austeridade. Os Estados Unidos cortaram bem menos gastos públicos do que a Europa, e a economia americana voltou a crescer. É lógico encerrar a experiência com a flexibilização quantitativa. Haverá um crash, mas não tão terrível quanto as pessoas parecem prever.

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