quarta-feira, 19 de junho de 2013

Privatização neoliberal da água em Portugal

Privatização e concessão da água, há diferença? Por João Bau

Postado por esquerda.net
João Bau, investigador-coordenador e deputado municipal do Bloco em Lisboa, afirma neste texto que defende a “propriedade pública e a gestão pública dos serviços de abastecimento de água e saneamento”. Salienta que esta opção se baseia numa visão “diferente da perspetiva neoliberal” e que assenta noutros valores e noutra cultura, “que passa pelo reconhecimento do 'direito à água', condição necessária à garantia do direito à vida, como sendo uma responsabilidade coletiva”.
João Bau defende a “propriedade pública e a gestão pública dos serviços de abastecimento de água e saneamento”. Salienta que esta opção se baseia numa visão “diferente da perspetiva neoliberal” e que assenta noutros valores e noutra cultura, “que passa pelo reconhecimento do 'direito à água', condição necessária à garantia do direito à vida, como sendo uma responsabilidade coletiva”.
Publicamos no esquerda.net na íntegra o texto de apoio à intervenção de João Bau1, na mesa redonda: “Privatização e concessão da água, há diferença?”, realizada no Porto em 16 de maio de 2013.
1- Considerações iniciais
No convite que me foi formulado para participar nesta sessão foi-me proposto que “abordasse a questão em debate (“privatização e concessão da água, há diferença?”) com um tema que considerasse mais adequado”.
E confesso que me veio imediatamente à cabeça que a questão formulada terá porventura sido a que veio à cabeça dos membros do atual governo quando iniciaram a sua ação governativa: como entregar ao capital privado (um objetivo declarado da política do governo) a exploração dos serviços de água e saneamento que envolviam responsabilidades (ou melhor, capitais) do Estado? Privatizar a “holding” estatal do sector (a AdP-Águas de Portugal) ou concessionar a gestão das empresas do grupo? Todos tivemos aliás conhecimento pela comunicação social que esta problemática estava em cima da mesa da atual equipa ministerial…e, evidentemente, dos interessados na privatização. Inicialmente a comunicação social noticiava que a AdP estava incluída na lista de empresas a privatizar, ou seja, das empresas que o governo pretendia alienar. Só bastante mais tarde os meios de comunicação social começaram a falar de concessão de serviços.
O tema que escolhi para a abordagem da questão que me foi proposta é pois, exatamente a questão governamental atrás referida “Como entregar ao capital privado a exploração dos serviços de água e saneamento com capitais do Estado?” E para concretizar a via que selecionei, e contribuir para o debate sobre ela, procurarei responder, ou melhor, dar “as minhas respostas”, para um conjunto de questões:
- Será que a privatização ou a concessão de serviços de abastecimento de água e saneamento são a mesma coisa? Em que diferem?
- Porquê não sou adepto da privatização dos referidos serviços de água e saneamento e sou favorável à sua gestão por entidades públicas?
- Que efeitos são de esperar se os serviços de água e saneamento forem privatizados?
- E porquê o atual governo PSD/CDS escolheu a via da concessão para entrega ao capital privado dos sistemas de água e saneamento, em detrimento da via da venda do capital das “holding” estatal?
Evidentemente que, dado o tempo limitado de que posso dispôr, só poderei indicar muito sumariamente alguns dos principais tópicos das resposta às questões que formulei, sendo porventura no debate que se poderão aprofundar algumas das pistas que procurarei apresentar.
2- Privatização ou concessão de serviços de água e saneamento a entidades privadas é a mesma coisa?
Os modelos de gestão de serviços de água e saneamento que correspondem às hipóteses que são postas no tema escolhido para este debate estão na “mesma margem” (ou seja, implicam a adoção de idênticos critérios de gestão, uma gestão que tem como prioridade “a criação de valor para o acionista”) mas são diferentes.
Quando se fala de gestão privada de sistemas de água e saneamento em sentido estrito fala-se de um modelo em que quer a gestão quer a propriedade dos sistemas é privada.
E quando se fala de concessão fala-se de um modelo em que a entidade com competência legal em matéria de gestão dos serviços (no caso da água e saneamento os municípios, associações de municípios, as regiões autónomas ou o Estado no caso de sistemas multimunicipais) concessiona ou delega numa terceira entidade (que pode ser uma empresa de capitais públicos, privados ou mistos) a gestão dos sistemas por sua conta e risco durante um determinado período de tempo, obtendo essa entidade a sua remuneração diretamente dos utentes. O financiamento de obras novas para a construção do sistema, ou de simples ampliação, renovação ou modernização do imobilizado são da responsabilidade do concedente ou do concessionário de acordo com o convencionado no contrato de concessão.
Quando se fala em concessão de serviços a privados ou da sua privatização (em sentido estrito) está-se pois a falar (em ambos os casos) da sua entrega à gestão privada, ou em linguagem corrente da sua privatização em sentido lato. Em detrimento da sua gestão pública, seja ela direta (serviços dos municípios ou entidades municipais autónomas) ou delegada (em empresas de capitais públicos, sejam eles municipais, regionais e/ou estatais).
3- Porque sou adepto da gestão pública dos serviços de abastecimento de água e saneamento?
Que resposta é que eu daria à questão que porventura o atual governo se terá colocado: “privatização da AdP ou concessão a entidades privadas dos seus sistemas multimunicipais de água e saneamento”? Pois eu responderia que nem uma nem outra das opções propostas.
Sou um defensor da propriedade pública e da gestão pública dos serviços de abastecimento de água e saneamento. E a minha opção pela defesa da gestão pública baseia-se, exatamente, na visão que tenho para esses serviços só poder ser concretizada por uma gestão pública.
Esta visão é diferente da perspetiva neoliberal do que devem ser os serviços de abastecimento de água e saneamento, assenta noutros valores, e noutra cultura. Que passa pelo reconhecimento do “direito à água”, condição necessária à garantia do direito à vida, como sendo uma responsabilidade coletiva. E pela adoção de políticas da água baseadas nos princípios da ética social, da solidariedade e da igualdade.
De entre os princípios fundamentais desta “visão” aponto os seguintes:
1) Os serviços públicos de água devem ser universais, devem ser concebidos e geridos como sendo dirigidos a todos e cada um dos cidadãos. E, portanto, um primeiro princípio que os serviços de abastecimento de água devem assumir é de que lhes compete garantir a efetividade do exercício do “direito à água” de cada uma das pessoas. Compete-lhes, pois, ao assegurar a universalização da prestação do serviço de abastecimento de água, evitar a marginalização das populações mais pobres, ou daquelas cuja localização geográfica exige investimentos com taxas de retorno reduzidas (ou mesmo negativas).
2) A definição de uma adequada política de financiamento global (que tenha em conta não só o custo do investimento e os encargos de exploração e manutenção dos sistemas existentes, mas também a necessidade da sua expansão e reabilitação), que designadamente explicite que parcela do financiamento global deve ser obtida por recurso às tarifas. E também a definição de uma política tarifária que não pode deixar de ter em conta nem a necessidade de geração dos fundos indispensáveis à garantia da qualidade do serviço a prestar, nem a dimensão social dos serviços prestados. O que recomenda que tenha em conta a distinta natureza das diferentes funções e utilizações da água, que fazem apelo a diferentes valores e para as quais têm de ser definidas prioridades, direitos e critérios de gestão distintos. E portanto, quando da definição dos sistemas tarifários, há que considerar de forma diferenciada:
* a água-vida, em funções de vida, que dizem respeito a direitos humanos individuais (o acesso à água potável, condição de vida e saúde) e coletivos (o direito das comunidades ao território e seus ecossistemas);
* a água-cidadania, em funções de serviço público ou de interesse geral, que dizem respeito a direitos sociais, tais como os relacionados com a saúde pública, a coesão social e a equidade;
* a água-negócio, em funções de negócios legítimos, que dizem respeito a direitos privados e individuais a melhorar o nível de riqueza e bem estar.
Se admitirmos a existência de um “direito à água”, e admitirmos portanto que é uma responsabilidade social coletiva assegurar que cada um dos cidadãos tenha de facto acesso a “uma água salubre e de qualidade aceitável para as utilizações pessoais e domésticas de cada um”, então há ainda que assegurar a existência de mecanismos de solidariedade para a água, por forma a que seja garantida a todos, do ponto de vista económico, a acessibilidade ao serviço de abastecimento de água.
3) A prestação de um serviço de qualidade aos utentes, que contemple não apenas a qualidade do produto fornecido mas também aspetos de ordem social, económica e ambiental.
4) A consideração dos operadores como instrumentos de política de ambiente, adotando uma ótica de sustentabilidade, de promoção da conservação da água e da gestão da procura.
5) A consideração dos operadores como instrumentos de política de desenvolvimento regional e local, o que implica, nomeadamente, um contacto estreito e um trabalho conjunto com os responsáveis políticos a esses níveis.
6) A tomada em consideração do longo prazo, nomeadamente no que respeita à necessidade de investimentos pesados, irreversíveis e com longos períodos de amortização. Perspetiva bem diferente da ótica de curto prazo e de procura do máximo rendimento imediato adotada hoje em dia pelo capital financeiro especulativo.
7) A adoção de uma política de relação e de comunicação com os cidadãos, com associações (de consumidores, ambientalistas, de cariz local, de sectores de atividade) e com a comunicação social, de verdade, de transparência e incentivadora da participação e do controlo social dos serviços.
8) A adoção do princípio de que uma cultura de serviço público no seio dos trabalhadores deve ser acarinhada, promovida e desenvolvida.
9) A preocupação com o reforço da capacidade de gestão dos serviços da abastecimento de água e saneamento, como fator essencial para que seja assegurada a sustentabilidade dos serviços prestados. O que exige especial atenção, nomeadamente, à política de financiamento global, à política tarifária, à política de capacitação tecnológica e à política de recursos humanos e formação.
10) Num mercado cada vez mais aberto os grandes grupos internacionais que dominam o mercado mundial assumem uma política de verticalização do sector (que implica que recorram preferencialmente às suas empresas de projeto, de consultoria, de construção, de fornecimento de equipamentos e materiais, etc.). Essa política tem óbvio impacto no mercado interno (nomeadamente no nível de emprego) dos países em que desenvolvem a sua atividade, mas é extremamente importante para a rentabilização do negócio. Compete pois a cada país a assunção de uma política de promoção dos interesses, capacidades e competências nacionais, quer no mercado nacional quer no mercado internacional.
A minha opção pela defesa da gestão pública para os serviços de abastecimento de água e saneamento baseia-se pois, exatamente, no facto de a visão que foi apontada para esses serviços (com os seus valores, a sua cultura, as suas formas de atuação, as suas grandes linhas estratégicas) só poder ser, em minha opinião, concretizada por uma gestão pública. Esta minha opção não assenta, pois, na defesa das experiências de todas, e de cada uma, das gestões públicas no sector. Que, em tantos casos, se afastam da visão por mim defendida. Como, aliás, a defesa da gestão privada se não faz pela defesa da gestão de todas, e de cada uma, das suas experiências passadas ou atuais.
Ou seja, esta minha opção pela gestão pública de serviços não é feita no desconhecimento das disfunções das atividades e serviços prestados na prática por tantas autoridades públicas, nem das críticas feitas às autoridades públicas pelos defensores do neoliberalismo. Não estamos porém condenados a escolher entre a gestão privada de serviços públicos subordinada ao objetivo da “criação de valor para o acionista” e uma gestão pública burocratizada, ineficiente, por vezes corrupta e distante dos cidadãos e das suas necessidades e aspirações, como sabemos que ocorre em determinadas situações. Pelo contrário, defendo a necessidade de redefinir e relegitimar politicamente a ação pública.
Muito embora seja oportuno referir que a realidade com que nos defrontamos aponta para que as modalidades e experiências de gestão pública de serviços de água e saneamento se revelem, em regra, como mais eficientes e mais eficazes (para os cidadãos) do que as modalidades e experiências de gestão privada. Certamente que será também por isso que a gestão privada responde apenas por 5 a 7% da população servida no Mundo e a gestão pública pelo restante. E que na generalidade dos países desenvolvidos (EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e a generalidade da Europa, com exceção da Inglaterra e Gales, França, em parte, a Espanha e alguns países da Europa de Leste) a gestão pública é largamente dominante ou é até a responsável pela totalidade dos sistemas.
4 - Que efeitos tem a privatização de serviços de abastecimento de água e saneamento?
A privatização do Grupo Águas de Portugal teria certamente efeitos idênticos aos verificados em tantos outros países, nomeadamente aumento de preços, aumento do desemprego, falta de sensibilidade social, menor atenção à temática da sustentabilidade, adoção de uma ótica de curto prazo e de procura do máximo rendimento imediato, etc.
Acresce que uma eventual privatização da AdP (dado o elevado montante que implicaria) levaria provavelmente ao seu controlo por um dos grandes grupos multinacionais do sector. O que, dada a política de verticalização praticada pelos esses grandes grupos (que implica que as empresas operadoras do grupo recorram sistematicamente às restantes empresas do seu grupo para a aquisição de materiais e serviços), implica enormes riscos para as empresas portuguesas que trabalham nos subsectores ligados ao abastecimento de água e saneamento e aos resíduos (gabinetes de estudos e projeto, empreiteiros, empresas vendedoras de materiais, equipamentos e produtos, empresas que prestam serviços de consultoria, de gestão da qualidade, de formação profissional, de fiscalização de obras, etc.).
Em acréscimo há que não esquecer que a decisão de privatização de um serviço de água é praticamente irreversível (se concretizada por via de uma concessão, pelo período desta), dado o valor das indemnizações que uma alteração posterior dessa decisão implicaria.
5- Porquê o governo PSD/CDS opta pela gestão privada de serviços de abastecimento de água e saneamento?
A orientação de privatização da AdP-Águas de Portugal, a holding do Estado Português no domínio do saneamento básico, é neste momento a grande questão que se põe ao País no âmbito das políticas do abastecimento de água e saneamento. Tal privatização tem de ser entendida e analisada como constituindo um dos passos de implementação da política do atual governo. E não, como por vezes á apresentada, como tendo por objetivos o aumento da eficiência na gestão da água ou o de fomentar a concorrência no sector das águas (finalidade manifestamente inalcançável para um serviço que funciona em regime de monopólio natural) ou o de “libertar a sociedade civil”.
A AdP (com todas as suas virtudes, dificuldades e limitações) teve ao longo dos anos uma atividade notável na implementação de políticas que conduziram a uma melhoria nos níveis de atendimento e de qualidade do abastecimento de água e do saneamento no nosso país. A qualidade da nossa água de abastecimento está garantida em praticamente todo o território, a qualidade das nossas praias e rios melhorou enormemente, a capacidade técnica dos portugueses neste sector evoluiu de forma significativa. O trabalho desenvolvido tem sido considerado quer pela União Europeia quer por agências financeiras internacionais como um caso ímpar de sucesso.
A decisão da sua privatização assenta numa clara opção ideológica. Foi aliás anunciada sem que fossem feitos quaisquer estudos de análise do desempenho das entidades gestoras de carácter público e privado em Portugal e em países estrangeiros, identificando os pontos fortes e fracos do seu desempenho. E foram também ignoradas as dificuldades que a partir de cerca de 2002 os grupos privados enfrentam no sector das águas e as mudanças que foram ocorrendo, desde então, na sua estratégia.
Para quem defende uma visão para os serviços de água convergente com a que apresentei anteriormente, a intenção de privatização da AdP é um erro colossal. Mas evidentemente que, para quem defende tal privatização, essa decisão é perfeitamente convergente com a sua visão da sociedade, nomeadamente no que diz respeito às funções que o Estado deve (ou não) assumir e às funções que o sector privado deve assegurar. E a posição governamental de avançar com um conjunto de privatizações de serviços públicos é exatamente uma componente da sua política mais global adotada neste momento.
A resposta europeia às crises nacionais, acentuadas pela vulnerabilidade do euro, é bem conhecida por todos nós: planos de austeridade para recuperar a competitividade a partir da desvalorização dos salários diretos (retirada dos subsídios de Natal e de férias, corte nos salários, diminuição do pagamento do trabalho extraordinário, aumento do tempo de trabalho) e indiretos (aumento para os cidadãos dos custos de saúde e educação e de outros serviços públicos, redução das pensões). A austeridade contudo provoca recessão, o que agrava o défice orçamental, o que muito provavelmente exigirá novos aumentos de impostos que por sua vez agravarão a recessão.
Esta aplicação de programas de austeridade recessiva constitui um primeiro pilar das políticas que estão sendo implementadas e é acompanhada por um segundo pilar, o da reconfiguração neoliberal das economias. Com as políticas atuais, as relações de força na nossa sociedade tenderão a alterar-se profundamente, abrindo as portas a um novo regime social - despedimentos mais fáceis e baratos, fim dos contratos coletivos, enfraquecimento do poder sindical, serviços públicos mínimos com a privatização e mercantilização de serviços essenciais para a vida das populações, privatizações essas que promovem e possibilitam a progressiva entrada dos grupos privados nas áreas tradicionais de provisão pública. Tudo isso em paralelo com o aumento do desemprego e a falência de empresas, nomeadamente de PME. É este o quadro que enfrentamos em Portugal nos dias de hoje.
Estas ideias neoliberais (neste momento dominantes em Portugal), que “regressaram” à arena política nos anos oitenta do século passado, estão na base de uma crítica sistemática ao Estado e a todas as formas de ação pública que está neste momento em pleno desenvolvimento no nosso País: o Estado é acusado de desperdiçar os dinheiros públicos, de paralisar o aparelho económico, de gerir mal, de impedir a iniciativa individual, de transformar os cidadãos em dependentes da assistência pública, de proteger os medíocres e de conduzir o país à decadência. E os trabalhadores da administração pública e do sector empresarial público são, na sua generalidade, considerados ociosos e incompetentes e olhados como os responsáveis por incomportáveis custos para o Estado. Estas críticas são acompanhadas pelos pregadores da “teologia do mercado” pelo enunciado, não menos sistemático, de propostas de resposta política: desregulação da atividade económica, restauração do primado do mercado como mecanismo de distribuição e repartição dos recursos e da riqueza, redução dos impostos e das contribuições para os sistemas de segurança social, libertação das empresas de constrangimentos administrativos. Em suma, redução do Estado ao nível de um “Estado mínimo”, que se deveria limitar a fazer respeitar o direito privado e a assegurar a segurança de pessoas e bens, e que deveria circunscrever a sua ação, no domínio da economia, à proteção da concorrência. São estas as linhas força do pensamento neoliberal e da ação política dos seus defensores.
E são essas linhas de força, essas orientações, que estão na origem da decisão de entregar à gestão privada os sistemas de água e saneamento que neste momento são geridos pelas empresas do grupo AdP.
6- Porquê o governo PSD/CDS opta pela concessão das empresas do grupo AdP e não pela venda do capital da empresa?
Não tenho evidentemente a pretensão de ter uma resposta clara e definitiva à questão “porque é que o atual governo optou pela concessão (ou subconcessão) das empresas do grupo AdP em detrimento da venda do capital da AdP?”.
Mas há alguns elementos, que apresentarei em seguida, que poderão ajudar (ou não...) cada um de nós a encontrar a sua resposta a tal interrogação.
Começaria por recordar que foi o ano de 1989 que marcou a nível internacional o início de uma era de crescimento da gestão privada dos serviços de água e saneamento. Porém desde 2002 que todos os grupos multinacionais com actividade no domínio da água procuraram abandonar ou reduzir e racionalizar a sua exposição no sector. Esta tendência foi visível em todo o mundo, com os grupos multinacionais a retirarem-se dos países em desenvolvimento e as empresas locais serem vendidas a novos proprietários, frequentemente a grupos financeiros.
Nos dias de hoje, com a situação de crise existente, continua a redefinição das estratégias das multinacionais do sector. Constata-se agora que quer a Suez quer a Veolia (grupos que dominam de forma esmagadora o mercado da gestão privada na Europa e na cena internacional), como aliás as outras empresas de menores dimensões (como a SAUR e a FCC), estão crescentemente dependentes de capitais públicos, quer do governo francês quer dos bancos internacionais de desenvolvimento, como o IFC e o EBRD (este último especialmente empenhado no financiamento dos investimentos privados na Europa de Leste). Essa é uma das razões porque a estratégia das multinacionais passa atualmente pela opção por contratos de prestação de serviços e de assistência técnica e por contratos de gestão de sistemas em detrimento de contratos de concessão que impliquem investimentos por parte dos operadores. E pela opção por contratos de curta duração (5 ou 6 anos) em detrimento dos contratos por períodos de 25, 30 ou mais anos, que eram a regra ainda há não muito tempo.
Ora parece claro que a privatização da AdP só poderá conduzir ao seu controlo por capitais estrangeiros. De facto os grupos portugueses potencialmente interessados não têm dinheiro suficiente nem acesso ao crédito (o eng. Pedro Serra, o anterior presidente da AdP, apontou oportunamente para o grupo um valor de mil milhões de euros). Acresce que ao preço da empresa seria necessário adicionar a apresentação de garantias que substituam as que o Estado português concedeu para parte do crédito bancário (cerca de 3000 milhões). Parece claro que a decisão do governo português de não optar pela venda do capital da AdP, ou da participação desta nas empresas participadas, parece ir ao encontro da estratégia das grandes multinacionais do sector da água.
Quem seria que defendia a venda do capital da AdP? Internamente porventura o Ministro das Finanças, interessadíssimo certamente na receita a arrecadar e também na diminuição da exposição do Estado à dívida bancária do grupo de capitais públicos. E, externamente, isso interessaria a alguém? A quem?
Acrescento ainda uma outra observação. É que a decisão do governo de concessionar as empresas multimunicipais acolhe o conceito, apresentado pela primeira vez no PEAASAR 2007-2013, das “empresas gestoras de ativos e concedentes de serviços” para os sistemas multimunicipais. O que é que isto significa na prática? Como tive ocasião de escrever na altura própria (ou seja, na altura em que tal conceito foi apresentado), isso significa que uns (a AdP e os municípios, ou seja, as entidades públicas) respondem pelos financiamentos necessários, quer disponibilizando os capitais próprios das empresas, quer garantindo o crédito bancário que permite o aporte de capitais alheios, respondem por estes durante muitos anos perante a Banca e as suas empresas multimunicipais apresentam resultados negativos durante largos anos (o ”breakeven” ocorre apenas dez, onze, doze ou mais anos após o início da exploração do sistema). Outros (os privados) iniciam a operação dos sistemas sem necessidade de investir um euro nos sistemas que vão operar e estão portanto em condições de começar a distribuir dividendos aos seus acionistas desde o primeiro ano de operação.
Quem irá candidatar-se à concessão das empresas multimunicipais que resultarem do que o governo designou como o processo em curso de reestruturação do sector das águas? Os grandes grupos franceses? Grupos financeiros? Fundos de private equity? Ninguém?
E será que a privatização anunciada pelo governo vai entregar a gestão das empresas do grupo AdP não a empresas privadas, mas a empresas controladas pelo estado francês? Ou (como aconteceu noutros sectores) a empresas controladas por outro governo estrangeiro? Ou a algum fundo soberano?
7- Considerações finais
Encontramo-nos numa incontornável e inegável situação de crise. De crise financeira, de crise económica (ou seja, de crise da economia real, da economia produtiva), mas também de crise social, de crise ambiental, de crise energética, de crise alimentar. Crise essa que reflete e expressa também a crise de um modelo cultural (ou ideológico), que tem como seu principal pilar o fundamentalismo do livre mercado.
Estamos pois num momento de construção de novas alternativas, de conceção de soluções inovadoras e criativas, que façam emergir novas estruturas e formas organizativas da vida coletiva. Estamos num momento de escolhas e do necessário empenhamento na construção do futuro com base nessas escolhas e nos princípios e valores que as enformam.
Conforme aponta muito justamente Esteban Castro, pode dizer-se que as transformações introduzidas, a partir da década de oitenta, no domínio da gestão dos recursos naturais e dos serviços públicos essenciais (especialmente mediante as políticas de desregulação, liberalização e privatização) têm a intenção de descentrar o sistema de governabilidade tradicionalmente fundado sobre a premissa do papel diretor do Estado e de recentrá-lo sobre a base dos princípios do livre mercado. Isto implica, por sua vez, uma reformulação das finalidades e dos valores que orientam o desenvolvimento social, bem como dos sistemas institucionais e de poder envolvidos na prossecução de tais finalidades. Clara e explicitamente, essa reformulação, no caso que nos ocupa, conduziu ao abandono das metas universalistas adotadas desde os fins do século XIX, e a sua substituição por valores de mercado.
A ultrapassagem da situação atual, em meu entender, exige porém que sejam assumidos “novos desafios” e exige uma nova política. Há necessidade de recentrar o sistema de governabilidade, para que as pessoas e os seus direitos estejam no cerne das políticas de desenvolvimento. Há necessidade de reconhecer o papel essencial dos serviços públicos, de desenvolver a solidariedade, de apostar na participação dos cidadãos, de respeitar princípios de ética social e de sustentabilidade. E para que isso seja possível há que reconhecer a centralidade da ação do Estado, não para socializar as perdas do sector financeiro, mas para, em nome do interesse público, reassumir o controlo de sectores estratégicos, nomeadamente no que toca à provisão de serviços públicos. Esta orientação política é uma resposta necessária para fazer face à gravidade da crise que vivemos.
Diz o teólogo brasileiro Leonardo Boff que “Quem controla a água controla a vida e quem controla a vida tem o poder”. Estamos então na altura em que é necessário que todos sejamos chamados a pronunciar-nos sobre esta política que pretende entregar o que tem de ser de todos apenas a alguns. Artigo de João Bau, publicado no site da Associação Água Pública

1 Investigador-Coordenador. Presidente da EPAL nos períodos 1975-1980 e 1996-2000. Administrador da AdP-Águas de Portugal no período 1996-2002. Presidente da APRH no período 1990-1992. Presidente da APDA no período 2000-2003. Membro do “Board” da IWRA no período 1986-1988. Membro do “Board” da EUREAU no período 2000-2003. Deputado Municipal em Lisboa.

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